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Viver e morrer pela boca – Contornos da segurança alimentar

Viver e morrer pela boca – Contornos da segurança alimentar
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No presente século, as coisas sucedem à uma velocidade sem precedentes e a capacidade de resposta a esses estímulos precisa de melhor afinação. É cada vez mais frequente a disseminação de informações que dão conta da existência de alimentos contaminados e/ou laboratorialmente modificados, vendidos fora do prazo de validade, entre outros males associados à insegurança alimentar. Essa rajada de anúncios, penso, produzem em nós dois efeitos: informar-nos para a tomada das medidas adequadas;  suscitar medo/terror, levando-nos a olhar para o futuro com incertezas.

Um dos conteúdos mais presentes nesse conjunto de anúncios têm a ver com a produção, modificação química, transporte, conservação e deterioração dos alimentos que consumimos. Entretanto, preocupações relacionadas com a alimentação são milenares. Encontramos o relato bíblico narrado no livro de Génesis sobre segurança alimentar imposta pela gestão de “José do Egipto”; Marx e Malthus, ao abordarem questões demográficas também manifestaram tal preocupação, embora esses últimos assumissem posições antagónicas em suas abordagens.

Se para as ciências sociais o homem é resultado da cultura que o identifica, para as ciências biomédicas o homem é o que come. Desse ponto de vista é fundamental o entendimento de a questão alimentar faz convergir interesses, arruína povos, aproxima adversários, potencia nações e pode ser uma arma eficaz para destruição massiva. É nesse quesito que reside o cerne da minha reflexão.

A vida societária exige acções pensadas com respostas adequadas entre os actores. Assim, a segurança alimentar precisa de ser compreendida para além das suas dimensões biológicas, da simples adequação das necessidades diárias de nutrientes para a manutenção da sobrevivência humana, mas também a partir do seu contraponto: a insegurança alimentar e, por isso, trata-se de uma questão transversal.

Com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e, especificamente, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), ambas em 1945, o conceito de Segurança Alimentar ganha preocupação de escala internacional e, na sequência da discussão iniciada entre as duas grandes guerras, foi reconhecido como um problema de escassez global de alimentos, cuja incidência mais gravosa se verificava nos países pobres.

... a satisfação de necessidades alimentares básicas das sociedades humanas tem como principal finalidade a melhoria dos níveis de nutrição e saúde das populações.

Desde a década de 90, avançou-se no sentido de um progressivo reconhecimento do seu carácter multidisciplinar, que passou a incorporar preocupações relacionadas com a quantidade adequada, qualidade nutricional, biológica e sanitária dos alimentos. Em 1996, na Cimeira Mundial da Alimentação, definiu-se segurança alimentar nos seguintes termos: “existe segurança alimentar quando as pessoas têm, de forma permanente, acesso físico e económico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, a fim de levarem uma vida activa e saudável”. Nesta conformidade, a satisfação de necessidades alimentares básicas das sociedades humanas tem como principal finalidade a melhoria dos níveis de nutrição e saúde das populações. Por isso, a segurança alimentar é hoje, cada vez mais, uma preocupação central na definição das políticas de desenvolvimento, com grande destaque para o sector agrícola e consumo alimentar.

Numa altura em que se propala o combate à fome e a má nutrição, nota-se, em Angola, um despertar de consciências com forte aposta no sector da agricultura. Há uma procura desenfreada por aquisição de terras aráveis quer da parte do Estado quer dos privados, todos envolvidos na produção alimentar. Em paralelo, observa-se também uma forte aposta no sector da transformação, o que coloca o país na rota certa.

Entretanto, a pretensão de produzir para garantir o suficiente para as famílias não deve fazer-nos perder de vista que os alimentos contaminados andam por aí e provocam problemas de saúde às pessoas e aos animais dentro de uma cadeia. Dito doutro modo, há riscos associados à questão alimentar, daí a abordagem da necessidade de segurança, sendo que os riscos podem ser de ordem química, física e biológica.

Hoje, felizmente, os nossos supermercados são cada vez mais servidos com produtos resultantes desse esforço, nomeadamente químico, físico e biológico, todavia, a questão que se coloca não são as quantidades produzidas, mas sim a qualidade dos produtos que chegam ao consumidor final.

Para um país já mergulhado em más práticas como a corrupção, onde o “cabritismo” e os esquemas são suas variantes, se a ética não for convocada e exaltada ao ponto de desta “exonerar” a lógica da oferta de dificuldades para a venda de facilidades, então, ninguém está seguro

Esse quesito exige urgentemente uma abordagem ética e sistémica e pede-se a participação e o envolvimento de todas as forças vivas da sociedade no sentido de olhar-se para todo o processo produtivo até a sua comercialização com bastante responsabilidade, sob pena de estarmos  a assistir serenamente a construção de sepulcros de vidros. As nossas atenções não devem estar centradas exclusivamente no lucro, embora estejamos numa economia de mercado, mas também na produção em massa onde os fins não devem de qualquer forma justificar os meios utilizados. Há toda necessidade de avaliar-se os efeitos colaterais dos produtos que têm sido comercializados, sejam eles importados ou de produção interna.

Para um país já mergulhado em más práticas como a corrupção, onde o “cabritismo” e os esquemas são suas variantes, se a ética não for convocada e exaltada ao ponto de desta “exonerar” a lógica da oferta de dificuldades para a venda de facilidades, então, ninguém está seguro, uma vez que não está garantido o controlo de qualidade daquilo que chega às nossas mesas. Não havendo tal garantia, vale a pena lembrar que, historicamente, o alimento já foi usado como arma para destruir hostes inimigas. Essa estratégia parece emergir novamente, em escala global, com o mesmo propósito que é de reduzir/destruir populações de países pobres de onde ainda fazemos parte. Precisamos de coragem para todos nos alinharmos à lógica do “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”.

Há necessidade de fiscalização intensiva de toda  cadeia de produção dos alimentos até chegar ao consumidor, porque velar pela segurança alimentar é cuidar da própria vida.

 

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Moniz Sebastião

Ecologista Social

No presente século, as coisas sucedem à uma velocidade sem precedentes e a capacidade de resposta a esses estímulos precisa de melhor afinação. É cada vez mais frequente a disseminação de informações que dão conta da existência de alimentos contaminados e/ou laboratorialmente modificados, vendidos fora do prazo de validade, entre outros males associados à insegurança alimentar. Essa rajada de anúncios, penso, produzem em nós dois efeitos: informar-nos para a tomada das medidas adequadas;  suscitar medo/terror, levando-nos a olhar para o futuro com incertezas.

Um dos conteúdos mais presentes nesse conjunto de anúncios têm a ver com a produção, modificação química, transporte, conservação e deterioração dos alimentos que consumimos. Entretanto, preocupações relacionadas com a alimentação são milenares. Encontramos o relato bíblico narrado no livro de Génesis sobre segurança alimentar imposta pela gestão de “José do Egipto”; Marx e Malthus, ao abordarem questões demográficas também manifestaram tal preocupação, embora esses últimos assumissem posições antagónicas em suas abordagens.

Se para as ciências sociais o homem é resultado da cultura que o identifica, para as ciências biomédicas o homem é o que come. Desse ponto de vista é fundamental o entendimento de a questão alimentar faz convergir interesses, arruína povos, aproxima adversários, potencia nações e pode ser uma arma eficaz para destruição massiva. É nesse quesito que reside o cerne da minha reflexão.

A vida societária exige acções pensadas com respostas adequadas entre os actores. Assim, a segurança alimentar precisa de ser compreendida para além das suas dimensões biológicas, da simples adequação das necessidades diárias de nutrientes para a manutenção da sobrevivência humana, mas também a partir do seu contraponto: a insegurança alimentar e, por isso, trata-se de uma questão transversal.

Com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e, especificamente, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), ambas em 1945, o conceito de Segurança Alimentar ganha preocupação de escala internacional e, na sequência da discussão iniciada entre as duas grandes guerras, foi reconhecido como um problema de escassez global de alimentos, cuja incidência mais gravosa se verificava nos países pobres.

... a satisfação de necessidades alimentares básicas das sociedades humanas tem como principal finalidade a melhoria dos níveis de nutrição e saúde das populações.

Desde a década de 90, avançou-se no sentido de um progressivo reconhecimento do seu carácter multidisciplinar, que passou a incorporar preocupações relacionadas com a quantidade adequada, qualidade nutricional, biológica e sanitária dos alimentos. Em 1996, na Cimeira Mundial da Alimentação, definiu-se segurança alimentar nos seguintes termos: “existe segurança alimentar quando as pessoas têm, de forma permanente, acesso físico e económico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, a fim de levarem uma vida activa e saudável”. Nesta conformidade, a satisfação de necessidades alimentares básicas das sociedades humanas tem como principal finalidade a melhoria dos níveis de nutrição e saúde das populações. Por isso, a segurança alimentar é hoje, cada vez mais, uma preocupação central na definição das políticas de desenvolvimento, com grande destaque para o sector agrícola e consumo alimentar.

Numa altura em que se propala o combate à fome e a má nutrição, nota-se, em Angola, um despertar de consciências com forte aposta no sector da agricultura. Há uma procura desenfreada por aquisição de terras aráveis quer da parte do Estado quer dos privados, todos envolvidos na produção alimentar. Em paralelo, observa-se também uma forte aposta no sector da transformação, o que coloca o país na rota certa.

Entretanto, a pretensão de produzir para garantir o suficiente para as famílias não deve fazer-nos perder de vista que os alimentos contaminados andam por aí e provocam problemas de saúde às pessoas e aos animais dentro de uma cadeia. Dito doutro modo, há riscos associados à questão alimentar, daí a abordagem da necessidade de segurança, sendo que os riscos podem ser de ordem química, física e biológica.

Hoje, felizmente, os nossos supermercados são cada vez mais servidos com produtos resultantes desse esforço, nomeadamente químico, físico e biológico, todavia, a questão que se coloca não são as quantidades produzidas, mas sim a qualidade dos produtos que chegam ao consumidor final.

Para um país já mergulhado em más práticas como a corrupção, onde o “cabritismo” e os esquemas são suas variantes, se a ética não for convocada e exaltada ao ponto de desta “exonerar” a lógica da oferta de dificuldades para a venda de facilidades, então, ninguém está seguro

Esse quesito exige urgentemente uma abordagem ética e sistémica e pede-se a participação e o envolvimento de todas as forças vivas da sociedade no sentido de olhar-se para todo o processo produtivo até a sua comercialização com bastante responsabilidade, sob pena de estarmos  a assistir serenamente a construção de sepulcros de vidros. As nossas atenções não devem estar centradas exclusivamente no lucro, embora estejamos numa economia de mercado, mas também na produção em massa onde os fins não devem de qualquer forma justificar os meios utilizados. Há toda necessidade de avaliar-se os efeitos colaterais dos produtos que têm sido comercializados, sejam eles importados ou de produção interna.

Para um país já mergulhado em más práticas como a corrupção, onde o “cabritismo” e os esquemas são suas variantes, se a ética não for convocada e exaltada ao ponto de desta “exonerar” a lógica da oferta de dificuldades para a venda de facilidades, então, ninguém está seguro, uma vez que não está garantido o controlo de qualidade daquilo que chega às nossas mesas. Não havendo tal garantia, vale a pena lembrar que, historicamente, o alimento já foi usado como arma para destruir hostes inimigas. Essa estratégia parece emergir novamente, em escala global, com o mesmo propósito que é de reduzir/destruir populações de países pobres de onde ainda fazemos parte. Precisamos de coragem para todos nos alinharmos à lógica do “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”.

Há necessidade de fiscalização intensiva de toda  cadeia de produção dos alimentos até chegar ao consumidor, porque velar pela segurança alimentar é cuidar da própria vida.

 

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