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Vidas esquecidas

Vidas esquecidas
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Há duas semanas, visitei o bairro Nguanhã, no município do Sambizanga, onde cresci. Do Nguanhã guardo boas memórias: as idas clandestinas à praia do Porto Pesqueiro, e mais tarde à de Cacuaco, as partidas de futebol, os espectáculos de hip-hop, a igreja e os meus amigos. Entretanto, também tenho muitas más memórias, como os assaltos à mão armada à luz do dia, e as rixas de grupos rivais que muitas vezes terminaram em mortes, as prisões arbitrárias e a degração das nossas condições sociais.

Durante o período que vivi no Nguanhã, na companhia no meu irmão mais novo, percorri vários quilómetros a pé (da zona da Comarca Central de Luanda à antiga  Praça do Roque Santeiro) para ir à escola, que ficava no 1º de Maio, e criei várias memórias de situações de miséria, agressão física e à dignidade humano, mas sempre tive a esperança de que dias melhores viriam, embora tivesse o meu caminho iluminado por um candeeiro fumarento ou uma vela decadente, que usa para ler à madrugada horas a fio.

Sempre acreditei que o lugar onde nascemos ou crescemos não nos define se nós não o quisermos. Sempre elevei a minha visão além dos muros do meu quintal e neguei-me a  acreditar que o que as ruas tinham a oferecer-me era tudo que existia, por isso procurei outros horizontes. Mesmo quando fiquei um ano afastado das aulas, por incapacidade financeira dos meus pais, não aceitei que esse fosse o meu destino, e por isso fui atrás de outras oportunidades.

À beira da via, e mesmo junto à toda essa imundície, várias famílias fazem aí o seu ganha-pão, vendendo bens diversos, incluindo comida. A magoga, o bombó, a ginguba e o micate são feitos na hora. São saborosos, ou pelo foram, durante muitos anos, para mim. Mas deixaram de o ser.

Entretanto, há duas semanas, vieram-me à memória, como um relâmpago, várias imagens das situações por que passei, ao deparar-me com a degradação a que está atirado o Nguanhã. Mesmo diante da Comarca Central de Luanda, a estrada que dá acesso ao bairro, e que durante muito tempo serviu de alternativa para os automobilistas enquanto se construía a via principal da Petrangol, está interdita. Mas esta interdição não se deve ao facto de haver obras de melhoria. Pelo contrário. Depois de mais ou menos quatro anos, o asfalto que tinha sido estendido desapareceu por completo. No seu lugar estão buracos, esgotos descoberto e camadas espessas de lama que impedem a circulação automóvel na zona. À beira da via, e mesmo junto à toda essa imundície, várias famílias fazem aí o seu ganha-pão, vendendo bens diversos, incluindo comida. A magoga, o bombó, a ginguba e o micate são feitos na hora. São saborosos, ou pelo foram, durante muitos anos, para mim. Mas deixaram de o ser. E a pergunta que me fiz é: quando é que estes alimentos deixarão de ser saborosos para as várias crianças angolanas cujas vidas foram esquecidas nestes bairros? Que futuro terão elas se não acreditarem que existe um mundo além da delinquência, da droga e da prostituição?

É verdade que hoje, ao contrário do período em que vive no Nguanhã, já existe mais informação. E também há muito mais oportunidades de vida. Hoje o meu sobrinho, que ainda vive nesse bairro, tem um ipod, por exemplo, e várias crianças tem acesso à internet, de onde podem tirar bons exemplos vencer na vida, diferente de mim que vim ter acesso a estas ferramentas mais tarde. Mas a questão fundamental tem a ver com a ausência de condições e infra-estruturas no seu meio, o que já é um problema de política e governação.

Sempre acreditei que o lugar onde nascemos ou crescemos não nos define se nós não o quisermos. Sempre elevei a minha visão além dos muros do meu quintal e neguei-me a  acreditar que o que as ruas tinham a oferecer-me era tudo que existia, por isso procurei outros horizontes.

Em mais ou menos quatro anos, o Nguanhã degradou-se. Como cidadão, não posso afirmar-se satisfeito com um pretenso desenvolvimento do país quando as riquezas que são de todos nós não foram distribuídas melhor. E não se pode justificar que não o fizeram porque o país não cresceu mais.

Portanto, antes mesmo de melhorar o que está bem, é fundamental que corrijam, com urgência, o que está mal, como é o fosso que separa o povo dos seus representantes parlamentares. Ou seja, aos deputados, que receberão carros topo de gama e todo-terreno, o desafio que se lhes apresenta é que não deixem de sujar os “popós” nos nossos bairros degradados, sem estrada, nem luz e água. Queremos que, ao longo dos próximos cinco anos, venham regularmente visitar-nos e ouvir as nossas histórias. Que não se esqueçam das nossas vidas e nos ajudem a renovar a esperança moribunda. Só conhecendo as reais necessidades do povo é que poderão gerir e distribuir melhor, mesmo que continuemos a crescer menos.

 

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Sebastião Vemba

Fundador e Director Editorial do ONgoma News

Jornalista, apaixonado pela escrita, fotografia e artes visuais. Tem interesses nas novas medias, formação e desenvolvimento comunitário.

Há duas semanas, visitei o bairro Nguanhã, no município do Sambizanga, onde cresci. Do Nguanhã guardo boas memórias: as idas clandestinas à praia do Porto Pesqueiro, e mais tarde à de Cacuaco, as partidas de futebol, os espectáculos de hip-hop, a igreja e os meus amigos. Entretanto, também tenho muitas más memórias, como os assaltos à mão armada à luz do dia, e as rixas de grupos rivais que muitas vezes terminaram em mortes, as prisões arbitrárias e a degração das nossas condições sociais.

Durante o período que vivi no Nguanhã, na companhia no meu irmão mais novo, percorri vários quilómetros a pé (da zona da Comarca Central de Luanda à antiga  Praça do Roque Santeiro) para ir à escola, que ficava no 1º de Maio, e criei várias memórias de situações de miséria, agressão física e à dignidade humano, mas sempre tive a esperança de que dias melhores viriam, embora tivesse o meu caminho iluminado por um candeeiro fumarento ou uma vela decadente, que usa para ler à madrugada horas a fio.

Sempre acreditei que o lugar onde nascemos ou crescemos não nos define se nós não o quisermos. Sempre elevei a minha visão além dos muros do meu quintal e neguei-me a  acreditar que o que as ruas tinham a oferecer-me era tudo que existia, por isso procurei outros horizontes. Mesmo quando fiquei um ano afastado das aulas, por incapacidade financeira dos meus pais, não aceitei que esse fosse o meu destino, e por isso fui atrás de outras oportunidades.

À beira da via, e mesmo junto à toda essa imundície, várias famílias fazem aí o seu ganha-pão, vendendo bens diversos, incluindo comida. A magoga, o bombó, a ginguba e o micate são feitos na hora. São saborosos, ou pelo foram, durante muitos anos, para mim. Mas deixaram de o ser.

Entretanto, há duas semanas, vieram-me à memória, como um relâmpago, várias imagens das situações por que passei, ao deparar-me com a degradação a que está atirado o Nguanhã. Mesmo diante da Comarca Central de Luanda, a estrada que dá acesso ao bairro, e que durante muito tempo serviu de alternativa para os automobilistas enquanto se construía a via principal da Petrangol, está interdita. Mas esta interdição não se deve ao facto de haver obras de melhoria. Pelo contrário. Depois de mais ou menos quatro anos, o asfalto que tinha sido estendido desapareceu por completo. No seu lugar estão buracos, esgotos descoberto e camadas espessas de lama que impedem a circulação automóvel na zona. À beira da via, e mesmo junto à toda essa imundície, várias famílias fazem aí o seu ganha-pão, vendendo bens diversos, incluindo comida. A magoga, o bombó, a ginguba e o micate são feitos na hora. São saborosos, ou pelo foram, durante muitos anos, para mim. Mas deixaram de o ser. E a pergunta que me fiz é: quando é que estes alimentos deixarão de ser saborosos para as várias crianças angolanas cujas vidas foram esquecidas nestes bairros? Que futuro terão elas se não acreditarem que existe um mundo além da delinquência, da droga e da prostituição?

É verdade que hoje, ao contrário do período em que vive no Nguanhã, já existe mais informação. E também há muito mais oportunidades de vida. Hoje o meu sobrinho, que ainda vive nesse bairro, tem um ipod, por exemplo, e várias crianças tem acesso à internet, de onde podem tirar bons exemplos vencer na vida, diferente de mim que vim ter acesso a estas ferramentas mais tarde. Mas a questão fundamental tem a ver com a ausência de condições e infra-estruturas no seu meio, o que já é um problema de política e governação.

Sempre acreditei que o lugar onde nascemos ou crescemos não nos define se nós não o quisermos. Sempre elevei a minha visão além dos muros do meu quintal e neguei-me a  acreditar que o que as ruas tinham a oferecer-me era tudo que existia, por isso procurei outros horizontes.

Em mais ou menos quatro anos, o Nguanhã degradou-se. Como cidadão, não posso afirmar-se satisfeito com um pretenso desenvolvimento do país quando as riquezas que são de todos nós não foram distribuídas melhor. E não se pode justificar que não o fizeram porque o país não cresceu mais.

Portanto, antes mesmo de melhorar o que está bem, é fundamental que corrijam, com urgência, o que está mal, como é o fosso que separa o povo dos seus representantes parlamentares. Ou seja, aos deputados, que receberão carros topo de gama e todo-terreno, o desafio que se lhes apresenta é que não deixem de sujar os “popós” nos nossos bairros degradados, sem estrada, nem luz e água. Queremos que, ao longo dos próximos cinco anos, venham regularmente visitar-nos e ouvir as nossas histórias. Que não se esqueçam das nossas vidas e nos ajudem a renovar a esperança moribunda. Só conhecendo as reais necessidades do povo é que poderão gerir e distribuir melhor, mesmo que continuemos a crescer menos.

 

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