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“Precisamos ter um diálogo sobre o tipo de cidadãos que estamos a construir”, afirmou Eliette Mendes

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Andrade Lino

A comunicadora angolana Eliette Mendes afirmou ser necessário “começarmos a pensar mais profunda e abertamente sobre o tipo de cidadãos que estamos a construir”, para olharmos para a importância dos primeiros anos, “como aqueles que são cruciais para a formação da personalidade da sociedade que nós queremos”.

Essas declarações foram feitas pela fonte nesse último sábado, por ocasião do lançamento do seu primeiro livro, de nome “Nvula, a princesa das nuvens”, decorrido no Instituto Guimarães Rosa (Centro Cultural Brasil-Angola), quando fazia uma apreciação sobre a literatura infantil angolana, em entrevista ao ONgoma News.

Nesse sentido, um dos motivos pelos quais resolveu entrar nesta aventura é o facto de realmente ter se identificado com o défice actual de produção de livros infantis. “Diz-se que é necessária uma aldeia para se criar uma criança. Eu, como parte de uma aldeia, senti que não tinha o necessário para ajudar a criar as crianças, ajudar a educar as crianças que me estavam a ser postas sob custódia. Então, para a literatura infantil angolana, para música infantil e para todo processo criativo ligado às crianças em Angola, precisamos reflectir sobre que tipo de cidadãos estamos a construir”, reforçou a escritora, apelando uma maior produção de obras infantis, seja a nível da literatura, música ou arte.

Essa acaba por ser uma chamada de atenção não só para os criadores, mas também para os pais, porque se os pais fizerem pressão, as coisas nascem, referiu Eliette Mendes, que defende que os pais não deveriam se sentir confortáveis em apresentar conteúdos adultos aos seus filhos. “Não é correcto e é de certo modo uma violação dos direitos fundamentais da criança e da integridade desta criança enquanto indivíduo, porque é adultizada”, considerou.  

Formada em Língua e Literatura Inglesa pela Universidade Agostinho Neto, a autora, apaixonada por Comunicação, asseverou ser necessário passarmos por uma reeducação. “Nós somos um país que foi alvo de colonização e certas coisas têm que ser desaprendidas para que outras possam ser aprendidas, então isso não é só sobre crianças, mas é sobre tudo aquilo que é a base da sociedade, que são as famílias, quanto mais sólidas, quanto mais ligadas à sua ancestralidade”, acentuou a entrevistada, declarando que é esta a proposta que traz e gostaria que as pessoas se preocupassem mais de modo sincero e honesto, não como imposição mas como diálogo, porque “não existem respostas certas ou acabadas para a situação que nós vivemos actualmente, porém todo mundo pode fazer um contributo válido, pode fazer parte da aldeia”.

O livro, no entanto, ilustrado por Pinto Silvestre, narra a história de uma menina heroína, um acto de ousadia, segundo a escritora, contra aquilo que é a situação estabelecida na sua comunidade e exactamente por causa da sua tenra idade, sendo que a personagem apresenta uma certa dificuldade de se expressar, em trazer a sua voz. “Mas ela insiste e se sente empoderada e acaba por resolver a situação da seca”, que assolava a sua aldeia, avança Eliette, que clareou tratar-se de uma obra sobre empoderamento infantil, também sobre diálogo geracional e a questão da ancestralidade para as crianças angolanas.

A ideia para “Nvula, a princesa das nuvens” surgiu em 2019, mas foi fiel antecedendo a vários temas, “porque são vários, aquela coisa de ter várias ideias”, com foco maior já em 2020, para perceber exactamente qual era a avenida que queria como início, conta.

A princípio, “Nvula” não está sozinha, faz parte de uma comunidade de crianças que serão empoderadas, crianças que trazem a sua ancestralidade angolana, que trazem a sua voz para comunidades que por norma não aceitam muito bem o contributo dos mais novos. Em 2020 começou a amadurecer a ideia, e um pouco mais tarde começou todo um processo de produção do livro que é de edição de autor, por não ter recebido feedback quando estabeleceu contactos, fez saber ainda Eliette Mendes, que, assim, mergulhou nesta aventura, tendo por si mesma resolvido a escolha de um ilustrador, “a escolha de paginadora, edição, gráfica, o tipo de papel, custo de produção, e também trazer um bocadinho de questões de gestão para isso”.

“Acho que o ilustrador foi a coisa mais difícil. Eu falei com três ou quatro pessoas, o primeiro desafio para mim nem foi tanto a questão do custo porque alguns são realmente muito caros, mas foi perceberem a minha visão e flexibilidade para trabalharem comigo, porque apesar de eu não ter o conhecimento técnico para desenvolver as gravuras, eu tinha uma ideia bem clara na minha mente sobre o que eu queria que fosse a “Nvula”, tendo em conta a faixa etária que vai dos 2 aos 10 anos. Então, para mim era necessário que fosse um artista que fosse flexível ao ponto de trazer a minha visão, sem comprometer a sua arte, claro, e isso encontrei no Pinto Silvestre. Nós trabalhamos imenso até atingirmos um ponto em que ambos estávamos satisfeitos com o resultado”, partilhou.

Uma curiosidade é que “Nvula”, expressão da etnia ambundu, significa “chuva”, e no dia do lançamento do livro uma chuva miúda caiu sobre a cidade, nas primeiras horas, bem antes do evento. “Na nossa crença, a chuva é bênção, então quer dizer que os ancestrais me estão a abençoar por essa aventura, por isso me sinto de certo modo protegida”, considerou a autora. 

Sobre que impacto espera que a obra tenha no seio do público infantil, a escritora almeja que as crianças angolanas se identifiquem com a personagem, e espera que as crianças não angolanas, ou não africanas, percebam um bocado daquilo que é a realidade da cultura angolana. “Eu não digo que isso seja um grande ensaio antropológico, mas é uma oportunidade para iniciar um diálogo e eu também espero que, ao verem a “Nvula”, de modo educado, ganhem a sua voz e vão falando, expressando o seu ser criativo e pensando de modo crítico, porque crianças empoderadas, elas geram adultos criativos e adultos críticos no bom sentido”, argumentou.

* Com Ruth Mungongo

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Andrade Lino

Jornalista

Estudante de Língua Portuguesa e Comunicação, amante de artes visuais, música e poesia.

A comunicadora angolana Eliette Mendes afirmou ser necessário “começarmos a pensar mais profunda e abertamente sobre o tipo de cidadãos que estamos a construir”, para olharmos para a importância dos primeiros anos, “como aqueles que são cruciais para a formação da personalidade da sociedade que nós queremos”.

Essas declarações foram feitas pela fonte nesse último sábado, por ocasião do lançamento do seu primeiro livro, de nome “Nvula, a princesa das nuvens”, decorrido no Instituto Guimarães Rosa (Centro Cultural Brasil-Angola), quando fazia uma apreciação sobre a literatura infantil angolana, em entrevista ao ONgoma News.

Nesse sentido, um dos motivos pelos quais resolveu entrar nesta aventura é o facto de realmente ter se identificado com o défice actual de produção de livros infantis. “Diz-se que é necessária uma aldeia para se criar uma criança. Eu, como parte de uma aldeia, senti que não tinha o necessário para ajudar a criar as crianças, ajudar a educar as crianças que me estavam a ser postas sob custódia. Então, para a literatura infantil angolana, para música infantil e para todo processo criativo ligado às crianças em Angola, precisamos reflectir sobre que tipo de cidadãos estamos a construir”, reforçou a escritora, apelando uma maior produção de obras infantis, seja a nível da literatura, música ou arte.

Essa acaba por ser uma chamada de atenção não só para os criadores, mas também para os pais, porque se os pais fizerem pressão, as coisas nascem, referiu Eliette Mendes, que defende que os pais não deveriam se sentir confortáveis em apresentar conteúdos adultos aos seus filhos. “Não é correcto e é de certo modo uma violação dos direitos fundamentais da criança e da integridade desta criança enquanto indivíduo, porque é adultizada”, considerou.  

Formada em Língua e Literatura Inglesa pela Universidade Agostinho Neto, a autora, apaixonada por Comunicação, asseverou ser necessário passarmos por uma reeducação. “Nós somos um país que foi alvo de colonização e certas coisas têm que ser desaprendidas para que outras possam ser aprendidas, então isso não é só sobre crianças, mas é sobre tudo aquilo que é a base da sociedade, que são as famílias, quanto mais sólidas, quanto mais ligadas à sua ancestralidade”, acentuou a entrevistada, declarando que é esta a proposta que traz e gostaria que as pessoas se preocupassem mais de modo sincero e honesto, não como imposição mas como diálogo, porque “não existem respostas certas ou acabadas para a situação que nós vivemos actualmente, porém todo mundo pode fazer um contributo válido, pode fazer parte da aldeia”.

O livro, no entanto, ilustrado por Pinto Silvestre, narra a história de uma menina heroína, um acto de ousadia, segundo a escritora, contra aquilo que é a situação estabelecida na sua comunidade e exactamente por causa da sua tenra idade, sendo que a personagem apresenta uma certa dificuldade de se expressar, em trazer a sua voz. “Mas ela insiste e se sente empoderada e acaba por resolver a situação da seca”, que assolava a sua aldeia, avança Eliette, que clareou tratar-se de uma obra sobre empoderamento infantil, também sobre diálogo geracional e a questão da ancestralidade para as crianças angolanas.

A ideia para “Nvula, a princesa das nuvens” surgiu em 2019, mas foi fiel antecedendo a vários temas, “porque são vários, aquela coisa de ter várias ideias”, com foco maior já em 2020, para perceber exactamente qual era a avenida que queria como início, conta.

A princípio, “Nvula” não está sozinha, faz parte de uma comunidade de crianças que serão empoderadas, crianças que trazem a sua ancestralidade angolana, que trazem a sua voz para comunidades que por norma não aceitam muito bem o contributo dos mais novos. Em 2020 começou a amadurecer a ideia, e um pouco mais tarde começou todo um processo de produção do livro que é de edição de autor, por não ter recebido feedback quando estabeleceu contactos, fez saber ainda Eliette Mendes, que, assim, mergulhou nesta aventura, tendo por si mesma resolvido a escolha de um ilustrador, “a escolha de paginadora, edição, gráfica, o tipo de papel, custo de produção, e também trazer um bocadinho de questões de gestão para isso”.

“Acho que o ilustrador foi a coisa mais difícil. Eu falei com três ou quatro pessoas, o primeiro desafio para mim nem foi tanto a questão do custo porque alguns são realmente muito caros, mas foi perceberem a minha visão e flexibilidade para trabalharem comigo, porque apesar de eu não ter o conhecimento técnico para desenvolver as gravuras, eu tinha uma ideia bem clara na minha mente sobre o que eu queria que fosse a “Nvula”, tendo em conta a faixa etária que vai dos 2 aos 10 anos. Então, para mim era necessário que fosse um artista que fosse flexível ao ponto de trazer a minha visão, sem comprometer a sua arte, claro, e isso encontrei no Pinto Silvestre. Nós trabalhamos imenso até atingirmos um ponto em que ambos estávamos satisfeitos com o resultado”, partilhou.

Uma curiosidade é que “Nvula”, expressão da etnia ambundu, significa “chuva”, e no dia do lançamento do livro uma chuva miúda caiu sobre a cidade, nas primeiras horas, bem antes do evento. “Na nossa crença, a chuva é bênção, então quer dizer que os ancestrais me estão a abençoar por essa aventura, por isso me sinto de certo modo protegida”, considerou a autora. 

Sobre que impacto espera que a obra tenha no seio do público infantil, a escritora almeja que as crianças angolanas se identifiquem com a personagem, e espera que as crianças não angolanas, ou não africanas, percebam um bocado daquilo que é a realidade da cultura angolana. “Eu não digo que isso seja um grande ensaio antropológico, mas é uma oportunidade para iniciar um diálogo e eu também espero que, ao verem a “Nvula”, de modo educado, ganhem a sua voz e vão falando, expressando o seu ser criativo e pensando de modo crítico, porque crianças empoderadas, elas geram adultos criativos e adultos críticos no bom sentido”, argumentou.

* Com Ruth Mungongo

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