Caneta e Papel
Conto

O Último Pecado

O Último Pecado
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Numa noite escura e sem chuva, sem vento ou premonições, daquelas noites que não têm sonhos no meio, um jovem levantou-se da sua cama com rumo certo.

Nunca nada havia acontecido na breve vida dele. Só um pedido de seu pai.

Saiu de sua casa na longínqua localidade daquela “Benguela sem nome”, chamada de Chongoroi ou perto disso. 

Outros só diziam Chongoroi, terra de todos os que saíram de lá, terra de ninguém dos que ficaram.

Ele, este menino do Chongoroi, estava pronto para cumprir uma missão de alma. 

Coisa estranha ter a alma agarrada ao sono, às pernas, ao estômago. A alma agarrada à bexiga e ao despertar, daquelas dores de dar corda antes de dormir. 

Que alma era essa que ele tinha do alto dos seus 14 anos? Nem ele sabia.

Mas tinha uma missão, missão de alma, e não tinham ainda inventado os obstáculos nem peripécias para o impedir de a cumprir. 

Queria ser o primeiro a chegar à Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, centro da alma e da cidade de Benguela. O seu pai tinha pedido esse tanto e esse tão pouco.

Foi o primeiro a chegar à Igreja naquela manhã de acácias rubras.

Naqueles tempos, a cidade não tinha data. Era só Monbaka, Benguela.

Chegou e bateu à porta da sacrístia da Igreja do Pópulo. Ninguém respondeu. 

Esperou. Pouco tempo, pensou. 

Aquilo que o trazia, aquela missão, não tinha tempo nem tamanho. Esperou.

 Esperou pouco tempo para quem tinha tantas horas de andar a pé, tantas horas de cangote de burro, tantas horas de perguntar se estava ou não a fazer o correcto. Sabia que estava a obedecer a seu pai.

 Foram muitas as horas e percebeu que tinha feito mal as contas daquela caminhada e que os pés eram bem mais frágeis do que a quantidade de água que trazia, que a caminhada era bem maior do que *bombó e banana que trazia no saco de pano a tiracolo. Ajudou o pouco de *paracuca que pediu à irmã e que ela ofereceu sem esperança de ver devolvida...

Mas, esperar, quando se chega ao destino, é o menor dos tormentos, bem sabemos.

Finalmente, passado tanto tempo de bater à porta da Igreja e do tempo que ele tinha para esperar, chegou alguém.

-Ao que vens, rapaz? - perguntou uma voz. 

-Preciso de falar com o senhor padre antes da homília matinal. Por favor, pode anunciar-me? - disse o jovem.

-Duvido que o atenda antes da missa. Porém, diga-me a quem e o que devo anunciar?- rematou uma freira do outro lado da porta.

-Diga-lhe, Irmã, Senhora freira, que o meu pai descobriu um erro no discurso do padre, peço perdão, no discurso de Deus. Trago-lhe em primeira mão O Último Pecado!

-Erro de quê? - disse a freira – O Último Pecado? Jovem, pensa bem no que te sai da boca...

- Senhora, faça assim. Se, de facto, me quer ajudar, diga que meu pai abriu um debate que ele, quero dizer, o senhor padre, não está preparado para resolver esse erro se continuar a seguir o que está escrito no Livro Sagrado. É urgente levar esta preocupação para evitar que o nosso sacerdote, o nosso padre,  cometa mais erros! O meu pai tem razão, confesso.

A freira olhou-o e percebeu que tinha de amarrotar umas bofetadas ao miúdo. Impertinente, pensou. Menos do que umas bofetadas era pouco.

A freira abriu a porta da sacristia e puxou-o para dentro com um safanão. Avançou para ele, impiedosa.

O rapaz aceitou os açoites na cara, no ventre e outros açoites que é desnecessário descrever. Da mesma forma que encarou o caminho da estrada, assim encarou o castigo talvez merecido de quem ultrapassa o limite daquilo que não compreende.

Quando a freira se cansou de o agredir, açoitar, amaldiçoar ele disse, exausto: - Irmã, Minha Senhora, Dona freira, ai de mim. Agora que provou que você manda aqui, pode chamar o senhor padre?

A irmã ficou atónita. O raio do miúdo não foi abaixo, não pediu perdão, nem tentou correr de cotovelos em cambalhotas de fugir para longe das vergastadas.

A Irmã não achou que era um milagre! Achou que era um desafio, mais uma prova da necessidade da presença dela e das outras irmãs naquelas terras de Benguela, do Pópulo, de África, do Mundo. Tanta pancada não havia de ter sido em vão.

Primeiro não sorriu.

Depois fingiu um sorriso e perguntou:

-Queres falar com o senhor padre antes de ele dizer tolices, não é?- disse a freira – Este é o teu pedido?

O rapaz ainda conseguiu responder: - Se eu responder a verdade, a senhora bate-me outra vez?

Ela olhou para ele sem o tal sorriso.

-Não. Se disseres a verdade, só a verdade, não te bato... Qual é a pergunta?

-É uma pergunta simples, Senhora Irmã e freira, e nem é em *Umbundu.

A freira sentiu o desconforto da afirmação. O rapaz falaria na língua materna da freira, falaria no português formal de Deus, cortesia que ela jamais poderia retribuir. Nem em Umbundu nem em nenhuma outra língua deste Mundo que não fosse português. Jamais. 

Continuou o jovem: - O meu pai acredita em Deus. O meu pai é homem muito crente, mas não vai à Igreja, não participa em qualquer culto cristão, católico-apostólico romano, nem como cristão não-praticante... nem de outras que falam em inglês e outras línguas que dizem que são protestantes. Nada. Diz que acredita em Deus, mas nunca quis falar nisso. Tivemos uma conversa simples, eu perguntei-lhe: - Pai, acreditas em Deus? Ele disse que sim, que acreditava profundamente. Mais que tudo.

O jovem disse:  - Que coisa rara, senhora Irmã e freira, um homem acreditar em Deus e não O honrar e Obedecer. Um dia, o meu pai disse-me: -  "Filho, eu acredito em Deus, mas não simpatizo com Ele. Ele não é um bom amigo. Ele não tem sabido ser comigo aquele amigo que eu sempre fui D'ele... O Deus que eu acredito tem feito coisas que eu não faria nunca. Deixa as pessoas à sua sorte, sacrifica tudo e todos. São tantas as coisas... coisas que eu não faria, nem tu, meu filho, criado por mim e pela Palavra D'Ele".

A freira sentou-se a ouvi-lo.

-O meu pai continuou – disse o jovem - Filho, eu tenho pensado que Ele, o Nosso deus, existe mesmo, mas, apesar de seres tão jovem, será que consegues perceber que nós os dois faríamos melhor, à nossa medida? Percebi que o trabalho de Deus é diferente do que pensamos. O trabalho de Deus é Ser Deus, O Deus ou os Deuses, são o que são... Nós somos os que somos. Eles não têm tido tempo para dar atenção a estas terras do Chongoroi, mas continuo a acreditar N'ele, Meu Deus e Meu Criador. Amanhã de manhã vamos lavrar o lado oeste da nossa fazenda. Será que Ele virá connosco? Não Virá, estou certo. Acho que não Tem tido tempo... Posso pedir-te, meu filho, que acordes cedo e saias sem bagagem para Benguela? É um pedido simples do teu pai para que me tragas boas novas de Deus. Fazes isso, meu filho? É importante. Vai pela manhã em direcção a Benguela, evita as estradas principais e evita encontros com desconhecidos no caminho. Leva água e comida, mas somente o que puderes carregar sem te atrapalhar o passo ou corrida. Vai sem medo, meu filho. A tua missão é importante. Quando chegares à Igreja em Benguela pergunta se nós somos o Último Pecado. Tens de ser firme, filho. Somos o Último Pecado? Leva esta pergunta e não saias de lá sem resposta, nem saias de lá sem notícias minhas. Fazes isso, filho?

-Senhora Irmã e Freira - continuou o rapaz -  Esta foi a última vez que falei com o meu Pai e isto foi o que o meu pai me pediu e eu fiquei a pensar que ele, o meu pai, tem razão. Penso que, às vezes, é difícil acreditar que Deus olha por todos nós e que nos ama... Pode, por favor, senhora freira, pedir ao padre que tenha cuidado com o que nos faz acreditar? Pode, irmã, Senhora Freira? Pode perguntar ao padre se pode ter cuidado com o que prega porque o meu pai o pode calar com duas frases? Pode dizer-lhe que nós sabemos que não é verdade que Ele nos protege e não é verdade que Ele está em todo lado e dentro de todas as pessoas... Não está, eu sei. O meu pai também sabe, senhora freira. 

Gosto muito do senhor padre. No último natal foi até ao Chongoroi e trouxe-nos tantas estórias bonitas. Cada uma melhor do que a outra. Todas de Deus.

A última coisa que eu queria era que ele, o senhor Padre, pensasse que nós não gostamos dele... Bem, não queremos que ele pense que nós não sabemos que ele é tão nosso amigo, como Deus e a Irmã, digo, senhora freira. Mas, não imagina ninguém, nem sequer Deus, as coisas que se passaram lá para os lados do Chongoroi durante estes tempos de guerra, Irmã... Será que este sentimento de acreditar em Deus e não esperar nada D'Ele é o Último Pecado?

Pode o senhor padre responder a esta pergunta?

...

Conta-se que, no dia anterior a um ataque durante a última guerra de Angola, que matou toda a gente numa aldeia sem nome, terra de todos os que saíram de lá, terra de ninguém dos que ficaram, perto, muito perto do Chongoroi, um pai mandou um jovem de 14 anos falar com um padre a Benguela. O jovem ficou sem saber que o seu pai ía encontrar Deus, aquele Deus que eles tanto acreditavam, Aquele Deus, aquele Pai que acabou por o salvar.

A senhora freira abriu a porta da Igreja... 

A senhora freira abriu a porta da rua, abriu a porta da palavra da boca dela, da boca do jovem, da boca do padre, mas a boca de Deus ninguém há-de abrir, penso eu, que vos conto esta estória...

Que pai era aquele e que Deus tinha ele no peito?

* Bombó - Mandioca frita ou assada

* Paracuca - Doce de ginguba, amendoim

*Umbundu - Lingua tradicional do Sul de Angola

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Victor Amorim Guerra

Escritor

Autor do livro “Contos do Céu e da Terra”, obra vencedora da edição 2012 do Prémio Sonangol de Literatura, Victor Amorim Guerra transmite nos seus escritos, de pendor humanista, uma mensagem de paz, solidariedade e amor ao próximo.

Numa noite escura e sem chuva, sem vento ou premonições, daquelas noites que não têm sonhos no meio, um jovem levantou-se da sua cama com rumo certo.

Nunca nada havia acontecido na breve vida dele. Só um pedido de seu pai.

Saiu de sua casa na longínqua localidade daquela “Benguela sem nome”, chamada de Chongoroi ou perto disso. 

Outros só diziam Chongoroi, terra de todos os que saíram de lá, terra de ninguém dos que ficaram.

Ele, este menino do Chongoroi, estava pronto para cumprir uma missão de alma. 

Coisa estranha ter a alma agarrada ao sono, às pernas, ao estômago. A alma agarrada à bexiga e ao despertar, daquelas dores de dar corda antes de dormir. 

Que alma era essa que ele tinha do alto dos seus 14 anos? Nem ele sabia.

Mas tinha uma missão, missão de alma, e não tinham ainda inventado os obstáculos nem peripécias para o impedir de a cumprir. 

Queria ser o primeiro a chegar à Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, centro da alma e da cidade de Benguela. O seu pai tinha pedido esse tanto e esse tão pouco.

Foi o primeiro a chegar à Igreja naquela manhã de acácias rubras.

Naqueles tempos, a cidade não tinha data. Era só Monbaka, Benguela.

Chegou e bateu à porta da sacrístia da Igreja do Pópulo. Ninguém respondeu. 

Esperou. Pouco tempo, pensou. 

Aquilo que o trazia, aquela missão, não tinha tempo nem tamanho. Esperou.

 Esperou pouco tempo para quem tinha tantas horas de andar a pé, tantas horas de cangote de burro, tantas horas de perguntar se estava ou não a fazer o correcto. Sabia que estava a obedecer a seu pai.

 Foram muitas as horas e percebeu que tinha feito mal as contas daquela caminhada e que os pés eram bem mais frágeis do que a quantidade de água que trazia, que a caminhada era bem maior do que *bombó e banana que trazia no saco de pano a tiracolo. Ajudou o pouco de *paracuca que pediu à irmã e que ela ofereceu sem esperança de ver devolvida...

Mas, esperar, quando se chega ao destino, é o menor dos tormentos, bem sabemos.

Finalmente, passado tanto tempo de bater à porta da Igreja e do tempo que ele tinha para esperar, chegou alguém.

-Ao que vens, rapaz? - perguntou uma voz. 

-Preciso de falar com o senhor padre antes da homília matinal. Por favor, pode anunciar-me? - disse o jovem.

-Duvido que o atenda antes da missa. Porém, diga-me a quem e o que devo anunciar?- rematou uma freira do outro lado da porta.

-Diga-lhe, Irmã, Senhora freira, que o meu pai descobriu um erro no discurso do padre, peço perdão, no discurso de Deus. Trago-lhe em primeira mão O Último Pecado!

-Erro de quê? - disse a freira – O Último Pecado? Jovem, pensa bem no que te sai da boca...

- Senhora, faça assim. Se, de facto, me quer ajudar, diga que meu pai abriu um debate que ele, quero dizer, o senhor padre, não está preparado para resolver esse erro se continuar a seguir o que está escrito no Livro Sagrado. É urgente levar esta preocupação para evitar que o nosso sacerdote, o nosso padre,  cometa mais erros! O meu pai tem razão, confesso.

A freira olhou-o e percebeu que tinha de amarrotar umas bofetadas ao miúdo. Impertinente, pensou. Menos do que umas bofetadas era pouco.

A freira abriu a porta da sacristia e puxou-o para dentro com um safanão. Avançou para ele, impiedosa.

O rapaz aceitou os açoites na cara, no ventre e outros açoites que é desnecessário descrever. Da mesma forma que encarou o caminho da estrada, assim encarou o castigo talvez merecido de quem ultrapassa o limite daquilo que não compreende.

Quando a freira se cansou de o agredir, açoitar, amaldiçoar ele disse, exausto: - Irmã, Minha Senhora, Dona freira, ai de mim. Agora que provou que você manda aqui, pode chamar o senhor padre?

A irmã ficou atónita. O raio do miúdo não foi abaixo, não pediu perdão, nem tentou correr de cotovelos em cambalhotas de fugir para longe das vergastadas.

A Irmã não achou que era um milagre! Achou que era um desafio, mais uma prova da necessidade da presença dela e das outras irmãs naquelas terras de Benguela, do Pópulo, de África, do Mundo. Tanta pancada não havia de ter sido em vão.

Primeiro não sorriu.

Depois fingiu um sorriso e perguntou:

-Queres falar com o senhor padre antes de ele dizer tolices, não é?- disse a freira – Este é o teu pedido?

O rapaz ainda conseguiu responder: - Se eu responder a verdade, a senhora bate-me outra vez?

Ela olhou para ele sem o tal sorriso.

-Não. Se disseres a verdade, só a verdade, não te bato... Qual é a pergunta?

-É uma pergunta simples, Senhora Irmã e freira, e nem é em *Umbundu.

A freira sentiu o desconforto da afirmação. O rapaz falaria na língua materna da freira, falaria no português formal de Deus, cortesia que ela jamais poderia retribuir. Nem em Umbundu nem em nenhuma outra língua deste Mundo que não fosse português. Jamais. 

Continuou o jovem: - O meu pai acredita em Deus. O meu pai é homem muito crente, mas não vai à Igreja, não participa em qualquer culto cristão, católico-apostólico romano, nem como cristão não-praticante... nem de outras que falam em inglês e outras línguas que dizem que são protestantes. Nada. Diz que acredita em Deus, mas nunca quis falar nisso. Tivemos uma conversa simples, eu perguntei-lhe: - Pai, acreditas em Deus? Ele disse que sim, que acreditava profundamente. Mais que tudo.

O jovem disse:  - Que coisa rara, senhora Irmã e freira, um homem acreditar em Deus e não O honrar e Obedecer. Um dia, o meu pai disse-me: -  "Filho, eu acredito em Deus, mas não simpatizo com Ele. Ele não é um bom amigo. Ele não tem sabido ser comigo aquele amigo que eu sempre fui D'ele... O Deus que eu acredito tem feito coisas que eu não faria nunca. Deixa as pessoas à sua sorte, sacrifica tudo e todos. São tantas as coisas... coisas que eu não faria, nem tu, meu filho, criado por mim e pela Palavra D'Ele".

A freira sentou-se a ouvi-lo.

-O meu pai continuou – disse o jovem - Filho, eu tenho pensado que Ele, o Nosso deus, existe mesmo, mas, apesar de seres tão jovem, será que consegues perceber que nós os dois faríamos melhor, à nossa medida? Percebi que o trabalho de Deus é diferente do que pensamos. O trabalho de Deus é Ser Deus, O Deus ou os Deuses, são o que são... Nós somos os que somos. Eles não têm tido tempo para dar atenção a estas terras do Chongoroi, mas continuo a acreditar N'ele, Meu Deus e Meu Criador. Amanhã de manhã vamos lavrar o lado oeste da nossa fazenda. Será que Ele virá connosco? Não Virá, estou certo. Acho que não Tem tido tempo... Posso pedir-te, meu filho, que acordes cedo e saias sem bagagem para Benguela? É um pedido simples do teu pai para que me tragas boas novas de Deus. Fazes isso, meu filho? É importante. Vai pela manhã em direcção a Benguela, evita as estradas principais e evita encontros com desconhecidos no caminho. Leva água e comida, mas somente o que puderes carregar sem te atrapalhar o passo ou corrida. Vai sem medo, meu filho. A tua missão é importante. Quando chegares à Igreja em Benguela pergunta se nós somos o Último Pecado. Tens de ser firme, filho. Somos o Último Pecado? Leva esta pergunta e não saias de lá sem resposta, nem saias de lá sem notícias minhas. Fazes isso, filho?

-Senhora Irmã e Freira - continuou o rapaz -  Esta foi a última vez que falei com o meu Pai e isto foi o que o meu pai me pediu e eu fiquei a pensar que ele, o meu pai, tem razão. Penso que, às vezes, é difícil acreditar que Deus olha por todos nós e que nos ama... Pode, por favor, senhora freira, pedir ao padre que tenha cuidado com o que nos faz acreditar? Pode, irmã, Senhora Freira? Pode perguntar ao padre se pode ter cuidado com o que prega porque o meu pai o pode calar com duas frases? Pode dizer-lhe que nós sabemos que não é verdade que Ele nos protege e não é verdade que Ele está em todo lado e dentro de todas as pessoas... Não está, eu sei. O meu pai também sabe, senhora freira. 

Gosto muito do senhor padre. No último natal foi até ao Chongoroi e trouxe-nos tantas estórias bonitas. Cada uma melhor do que a outra. Todas de Deus.

A última coisa que eu queria era que ele, o senhor Padre, pensasse que nós não gostamos dele... Bem, não queremos que ele pense que nós não sabemos que ele é tão nosso amigo, como Deus e a Irmã, digo, senhora freira. Mas, não imagina ninguém, nem sequer Deus, as coisas que se passaram lá para os lados do Chongoroi durante estes tempos de guerra, Irmã... Será que este sentimento de acreditar em Deus e não esperar nada D'Ele é o Último Pecado?

Pode o senhor padre responder a esta pergunta?

...

Conta-se que, no dia anterior a um ataque durante a última guerra de Angola, que matou toda a gente numa aldeia sem nome, terra de todos os que saíram de lá, terra de ninguém dos que ficaram, perto, muito perto do Chongoroi, um pai mandou um jovem de 14 anos falar com um padre a Benguela. O jovem ficou sem saber que o seu pai ía encontrar Deus, aquele Deus que eles tanto acreditavam, Aquele Deus, aquele Pai que acabou por o salvar.

A senhora freira abriu a porta da Igreja... 

A senhora freira abriu a porta da rua, abriu a porta da palavra da boca dela, da boca do jovem, da boca do padre, mas a boca de Deus ninguém há-de abrir, penso eu, que vos conto esta estória...

Que pai era aquele e que Deus tinha ele no peito?

* Bombó - Mandioca frita ou assada

* Paracuca - Doce de ginguba, amendoim

*Umbundu - Lingua tradicional do Sul de Angola

Victor Amorim Guerra

Escritor

Autor do livro “Contos do Céu e da Terra”, obra vencedora da edição 2012 do Prémio Sonangol de Literatura, Victor Amorim Guerra transmite nos seus escritos, de pendor humanista, uma mensagem de paz, solidariedade e amor ao próximo.

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