Arte e Cultura
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O que Gilda, Jasi e Oksanna mostraram na segunda residência “Nzinga”

O que Gilda, Jasi e Oksanna mostraram na segunda residência “Nzinga”
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Andrade Lino

A segunda edição da residência artística “Nzinga”, promovida pela galeria Movart, apresentou-nos três mulheres artistas de nacionalidades distintas e cada uma delas explorando uma disciplina de forma isolada, resultado das pesquisas realizadas durante as primeiras semanas de convivência com o novo ambiente que conheceram, com a excepção da anfitriã Oksanna Dias, que simplesmente mergulhou o mundo que conhece desde que nasceu.

Foi num Open Studio que marcou o fim da residência em que o público tomou conhecimento daquele que foi o pouco mais de um mês de trabalho e troca de experiências entre Gilda Barros (Cabo-Verde), Jasi Pereira (Brasil) e Oksanna Dias (Angola).

Gilda, que aproveitou a sua estadia em Luanda para pintar um mural, escolheu a ilustração para o desafio que abraçou na residência, enquanto Jasi focou-se no seu trabalho de escultura, produção através da argila, e Oksanna na pintura e instalação, usando a costura como um dos recursos para a finalização das obras, e o fruto dessa jornada, que iniciou a 20 de Janeiro, floresceu no dia 24 de Fevereiro último.

Quis sair um pouco da sua zona de conforto e explorar, através de outras técnicas, o seu potencial como artista. Nas visitas feitas durante o mês inteiro, principalmente na primeira e segunda semanas, notou algo muito curioso – aspectos que não fazem parte da sua cultura e procurou tornar isso claro no seu trabalho.

A relatar um pouco o seu percurso artístico, tal como a angolana Oksanna Dias, Gilda Barros é muralista. Tudo começou efectivamente em 2018, depois de terminar a sua licenciatura em Design. “Digamos que sou relativamente nova neste campo artístico. Agora é que estou a perceber onde quero chegar, o caminho que estou a traçar. Essa participação em residências e workshops tem sido algo que faz com que eu cresça, enquanto ser humano e jovem artista, e eu posso dizer que nos primeiros momentos que comecei a pintar nas ruas, fazia-os apenas por encomenda e em tom decorativo, em quartos e salas, por exemplo. Não tinha emprego, porém decidi que não quis trabalhar para ninguém”, contou a residente, cujos temas dos trabalhos centram-se, dum modo geral, na figura feminina.

Durante a conversa, moderada pelo curador do projecto, Marcos Jinguba, a convidada mindelense partilhou que cresceu com a avó e mãe, porque a figura paterna não era muito presente, e por ser mulher sentiu a necessidade e obrigação de explorar mais esse tema. Trabalha de acordo com o espaço e atmosfera em que se encontra, e o seu último projecto, numa perspectiva muito sua, foi sobre uma aldeia, em São Vicente, onde as pessoas vivem à base da pesca, uma realidade muito comum na região de Cabo Verde, que é banhada pelo mar, trabalho que “retrata a relação entre um homem, mulher e filhos”, esse que “vai à pesca em busca do ganha-pão, mas que nem sempre volta a casa”.

Mas onde a artista decidiu se desafiar, estando na residência, é mesmo na exploração da figura feminina, duma forma mais abstracta, disse. Explorar a representatividade africana e a mulher em si – o cabelo, o tipo de cabelo e estilo de penteado/trança, algo que não existe na sua realidade, pelo que achou interessante a ideia. No princípio já perdia as esperanças em participar da residência porque já passava algum tempo sem receber uma reposta da galeria, depois da candidatura. “Mas depois recebi um email e vi que estava no top 3 de selecção para a residência, uma forma muito interessante de começar o ano. Quando cheguei cá, obviamente, quando alguém vai a um lugar diferente, pedir uma informação, começa a absorver muita informação: uma zungueira que passa todos os dias com os ovos fervidos e jindungu na cabeça, ou um gajo que anda meio louco pela estrada com a mota, sem saber o que vai acontecer, pequenas coisas que fizeram toda diferença para mim”, expressou.

A muralista reforçou ainda que, aqui, nas rodas, nos passeios e nas visitas que fizeram, absorveu tanta informação que chegou uma altura em que era preciso seleccionar o que trabalhar, porque o tempo ia passando e precisava-se fazer alguma coisa para apresentar. Foi assim que decidiu falar das tranças, da carapinha. “Vi mulheres, cada uma com um diferente tipo de trança, e no princípio achei que fossem dreadlocks, mas era uma composição difícil de perceber o início e o fim. Aí achei que deveria explorar mais e é um trabalho que levo comigo a Cabo-Verde”, adiantou.

“Fui a biblioteca, conversei com pessoas, fiz fotografias (com a ajuda da Oksanna, que por ser de cá pôde lidar com as pessoas para gerir a desconfiança delas), fomos ao São Paulo, Benfica, e na verdade foi onde encontrei esse conteúdo e acabei me focando nele, porque via muitas mulheres com esse penteado”, explicou.

Em palavras finais, Gilda Barros afirmou que vai levar uma visão diferente das coisas, uma forma de pensar do mundo, do universo, e com certeza vai partilhar com Mindelo as experiências por que passou cá em Angola.

Representar a espiritualidade

Jasi Pereira é uma artista muito “viajada”, que trabalha de acordo com o material que tem ao dispor, com o que lugar lhe proporciona, se tem ou não condições financeiras para produzir a obra... Tudo isso vai determinar o material a ser usado. Já trabalhou em murais, com destaque para o período pandémico, porque, em cada lugar, a sua poética gira em torno da realidade com que se deparar.

Nascida na periferia de Salvador da Bahia, Brasil, há momentos por exemplo em que trabalha a questão dos roubos nos bairros, noutras vezes a questão da ancestralidade. Conta ainda que, quando esteve na Polónia, trabalhou a questão da tridimensionalidade da figura humana, e vai mudando conforme vai aprendendo uma técnica nova.

E a dimensão do trabalho escultural que apresentou, num total de sensivelmente 9 obras, ao contrário do que se pode pensar, explora mais a espiritualidade do que a religiosidade, apesar de ser católica, a religião que recebeu dos pais e experimenta na sua vida. “Na minha cidade, todo mundo é d´oxum, respira e respeita o que os ancestrais trouxeram de África. Seja eu católica, seja eu umbanda, reconhecemos o valor da ancestralidade e as raízes das coisas. Então, no meu trabalho, resolvi representar algo que é presente em todas as coisas que vivem e respiram, não apenas nós, mas toda pedra, todo grão de areia, as crianças que a Oksanna abraçou nas suas obras, enfim”, explicou.

Ao longo do seu preparo, a sua pesquisa deu-se pelo olhar, pela observação das pessoas e do meio. Isso é parte do material que conseguiu recolher. “Ir ao Museu de Antropologia também foi um passo muito importante, e a convivência com a Oksanna permitiu esse laço direito com a cultura. Encontrámos muitas pessoas, mas entre nós havia alguém que nos transmitia isso directamente e, por essa transmissão, amo Angola, pela força, nobreza, atenção e abertura que tivemos para saborear a cultura e jeito de ser das pessoas”, manifestou a artista multidisciplinar, clareando que, para ela, isso foi matéria de trabalho, a questão da espiritualidade, o que sai de dentro das pessoas.

Jasi revelou ainda que foi muito importante, desde o primeiro dia, dizer que queria ir ao mercado, “porque nos oferece as coisas que não estão na loja de plástico, oferece-nos matéria orgânica”. “E escolher essa fibra que sai de dentro das peças para mim é muito importante. Enquanto a Gilda viu coisas muito diferentes da sua cultura, eu vi coisas muito parecidas à minha. Estamos em continentes diferentes, mas sinto muita coisa em comum e tentei transmitir isso com as fibras de Angola e o sisal que trouxe do Brasil”, acrescentou, tendo partilhado, por fim, que vai dar continuidade aos projectos na Academia de Belas Artes, em Salvador, mas como projecto pessoal é deixar o tempo dizer, ver pouco a pouco como vai transmitir as vidas e a vivência que viveu aqui.

Uma chamada de atenção em relação aos mais necessitados

Nos seus projectos pré-residência, Oksanna Dias, que trabalha com arte há quatro anos e deu os seus primeiros passos nas ruas, com o muralismo, fez parte da residência artística ResiliArt Angola, que visa ao apoio e promoção dos trabalhos de artistas emergentes. Como grafiteira, sempre estive ligada a projectos que discorram sobre temas pontuais e actuais. Por exemplo, durante a pandemia, participou de murais que tinham como objectivo a chamada de atenção aos cuidados a ter em relação à pandemia, pinturas que reflectiam sobre a higienização das mãos e o uso da máscara. Particularmente, os seus trabalhos focam-se em temas como amor-próprio, a aceitação daquilo que somos, o empoderamento feminino, a violência infanto-juvenil, etc.

Na “Nzinga”, a artista apresentou-se com obras focadas maioritariamente no trabalho infantil, pelo que se questiona se o seu activismo artístico é resultado de experiências ou de informações que o mundo vai lhe dando. E sim, é a primeira opção. É fruto de coisas que vê, de experiências próprias, de situações que vive ou já viveu, como quando apela à exibição da “coroa” (cabelo), porque já teve vergonha de andar com o cabelo solto, por sofrer insultos por isso. “Em Angola, temos preconceito contra o nosso próprio cabelo”, lamenta.

Mas o real foco dos trabalhos mostrados não são as suas memórias, e sim histórias que colheu nas ruas, de crianças que procuram soluções para os seus problemas no lixo, saltando de um contentor para outro, em busca de artigos para construção ou reciclagem de material de engraxar calçados e garantir o sustento, sendo os homens de casa tão cedo.

“Quando estou na rua a pintar, deparo-me com diversas pessoas, sejam homens, mulheres, crianças, e durante essa residência fomos para alguns lugares, dentre eles a praça do São Paulo, que muito frequento, e é uma zona onde podemos ver muitos meninos de rua, o mesmo à volta da galeria, apesar de se encontrar num ponto turístico como é a Baía de Luanda. Quando fomos ao São Paulo, abordei dois meninos que catavam lixo, e foi curioso eles não terem sido violentos, porque é comum rapazes na sua condição terem traços de delinquência. Pude falar com eles, Mauro e Milton, e a história que contam é que procuravam no lixo madeira para produzir material de engraxar sapatos”, revelou a residente angolana.

Nesse sentido, a obra, tinta acrílica sobre tela, procura mostrar esse processo de sobrevivência, aquilo que eles não têm, mas querem como mudança. Por exemplo, o Mauro é órfão de mãe, não tem protecção do pai e gostaria de estudar. No momento em que procura madeira para ter a sua caixa de engraxar, disse que o fazia para poder comprar roupa, realça Oksanna, que referiu haver na obra o detalhe dum OVNI, uma nave espacial, que representa um mundo imaginário, um possível lugar melhor para eles, como sinal de esperança. “Depois tive a ideia de trabalhar com costura numa obra que mostra a restauração do lixo para a construção duma casa, onde as crianças sintam o calor e afecto que não têm, como o menino da obra “Sopa solitária”, que apesar de ter tido um prato de sopa, não represento a sopa por ser ofertada geralmente só numa data especial do ano, enquanto a fome é de todos os dias”, rematou.

Durante o evento, esteve patente ainda uma instalação da pintora, a “Casa de Reflexão”, obra concebida por meio de corte e costura de tecidos reciclados, onde as pessoas podiam ir, reflectir e deixar as suas ideias e/ou opiniões assinadas “nas paredes”, sobre como ajudar a melhorar a situação dos mais necessitados, sendo que a acção social muito pouco se faz sentir.

Entretanto, para o futuro, Oksanna Dias afirma já ter muitas ideias para dar continuidade do seu trabalho. “É um processo contínuo, tenho muitas ideias. Durante a residência, a Jasi foi como uma mãe para nós. Acabei ficando doente por uns dias, mas apesar disso consegui sentir que tenho força, e porque as duas foram muito boas e carinhosas. Vou sentir saudades!”, exprimiu.

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Andrade Lino

Jornalista

Estudante de Língua Portuguesa e Comunicação, amante de artes visuais, música e poesia.

A segunda edição da residência artística “Nzinga”, promovida pela galeria Movart, apresentou-nos três mulheres artistas de nacionalidades distintas e cada uma delas explorando uma disciplina de forma isolada, resultado das pesquisas realizadas durante as primeiras semanas de convivência com o novo ambiente que conheceram, com a excepção da anfitriã Oksanna Dias, que simplesmente mergulhou o mundo que conhece desde que nasceu.

Foi num Open Studio que marcou o fim da residência em que o público tomou conhecimento daquele que foi o pouco mais de um mês de trabalho e troca de experiências entre Gilda Barros (Cabo-Verde), Jasi Pereira (Brasil) e Oksanna Dias (Angola).

Gilda, que aproveitou a sua estadia em Luanda para pintar um mural, escolheu a ilustração para o desafio que abraçou na residência, enquanto Jasi focou-se no seu trabalho de escultura, produção através da argila, e Oksanna na pintura e instalação, usando a costura como um dos recursos para a finalização das obras, e o fruto dessa jornada, que iniciou a 20 de Janeiro, floresceu no dia 24 de Fevereiro último.

Quis sair um pouco da sua zona de conforto e explorar, através de outras técnicas, o seu potencial como artista. Nas visitas feitas durante o mês inteiro, principalmente na primeira e segunda semanas, notou algo muito curioso – aspectos que não fazem parte da sua cultura e procurou tornar isso claro no seu trabalho.

A relatar um pouco o seu percurso artístico, tal como a angolana Oksanna Dias, Gilda Barros é muralista. Tudo começou efectivamente em 2018, depois de terminar a sua licenciatura em Design. “Digamos que sou relativamente nova neste campo artístico. Agora é que estou a perceber onde quero chegar, o caminho que estou a traçar. Essa participação em residências e workshops tem sido algo que faz com que eu cresça, enquanto ser humano e jovem artista, e eu posso dizer que nos primeiros momentos que comecei a pintar nas ruas, fazia-os apenas por encomenda e em tom decorativo, em quartos e salas, por exemplo. Não tinha emprego, porém decidi que não quis trabalhar para ninguém”, contou a residente, cujos temas dos trabalhos centram-se, dum modo geral, na figura feminina.

Durante a conversa, moderada pelo curador do projecto, Marcos Jinguba, a convidada mindelense partilhou que cresceu com a avó e mãe, porque a figura paterna não era muito presente, e por ser mulher sentiu a necessidade e obrigação de explorar mais esse tema. Trabalha de acordo com o espaço e atmosfera em que se encontra, e o seu último projecto, numa perspectiva muito sua, foi sobre uma aldeia, em São Vicente, onde as pessoas vivem à base da pesca, uma realidade muito comum na região de Cabo Verde, que é banhada pelo mar, trabalho que “retrata a relação entre um homem, mulher e filhos”, esse que “vai à pesca em busca do ganha-pão, mas que nem sempre volta a casa”.

Mas onde a artista decidiu se desafiar, estando na residência, é mesmo na exploração da figura feminina, duma forma mais abstracta, disse. Explorar a representatividade africana e a mulher em si – o cabelo, o tipo de cabelo e estilo de penteado/trança, algo que não existe na sua realidade, pelo que achou interessante a ideia. No princípio já perdia as esperanças em participar da residência porque já passava algum tempo sem receber uma reposta da galeria, depois da candidatura. “Mas depois recebi um email e vi que estava no top 3 de selecção para a residência, uma forma muito interessante de começar o ano. Quando cheguei cá, obviamente, quando alguém vai a um lugar diferente, pedir uma informação, começa a absorver muita informação: uma zungueira que passa todos os dias com os ovos fervidos e jindungu na cabeça, ou um gajo que anda meio louco pela estrada com a mota, sem saber o que vai acontecer, pequenas coisas que fizeram toda diferença para mim”, expressou.

A muralista reforçou ainda que, aqui, nas rodas, nos passeios e nas visitas que fizeram, absorveu tanta informação que chegou uma altura em que era preciso seleccionar o que trabalhar, porque o tempo ia passando e precisava-se fazer alguma coisa para apresentar. Foi assim que decidiu falar das tranças, da carapinha. “Vi mulheres, cada uma com um diferente tipo de trança, e no princípio achei que fossem dreadlocks, mas era uma composição difícil de perceber o início e o fim. Aí achei que deveria explorar mais e é um trabalho que levo comigo a Cabo-Verde”, adiantou.

“Fui a biblioteca, conversei com pessoas, fiz fotografias (com a ajuda da Oksanna, que por ser de cá pôde lidar com as pessoas para gerir a desconfiança delas), fomos ao São Paulo, Benfica, e na verdade foi onde encontrei esse conteúdo e acabei me focando nele, porque via muitas mulheres com esse penteado”, explicou.

Em palavras finais, Gilda Barros afirmou que vai levar uma visão diferente das coisas, uma forma de pensar do mundo, do universo, e com certeza vai partilhar com Mindelo as experiências por que passou cá em Angola.

Representar a espiritualidade

Jasi Pereira é uma artista muito “viajada”, que trabalha de acordo com o material que tem ao dispor, com o que lugar lhe proporciona, se tem ou não condições financeiras para produzir a obra... Tudo isso vai determinar o material a ser usado. Já trabalhou em murais, com destaque para o período pandémico, porque, em cada lugar, a sua poética gira em torno da realidade com que se deparar.

Nascida na periferia de Salvador da Bahia, Brasil, há momentos por exemplo em que trabalha a questão dos roubos nos bairros, noutras vezes a questão da ancestralidade. Conta ainda que, quando esteve na Polónia, trabalhou a questão da tridimensionalidade da figura humana, e vai mudando conforme vai aprendendo uma técnica nova.

E a dimensão do trabalho escultural que apresentou, num total de sensivelmente 9 obras, ao contrário do que se pode pensar, explora mais a espiritualidade do que a religiosidade, apesar de ser católica, a religião que recebeu dos pais e experimenta na sua vida. “Na minha cidade, todo mundo é d´oxum, respira e respeita o que os ancestrais trouxeram de África. Seja eu católica, seja eu umbanda, reconhecemos o valor da ancestralidade e as raízes das coisas. Então, no meu trabalho, resolvi representar algo que é presente em todas as coisas que vivem e respiram, não apenas nós, mas toda pedra, todo grão de areia, as crianças que a Oksanna abraçou nas suas obras, enfim”, explicou.

Ao longo do seu preparo, a sua pesquisa deu-se pelo olhar, pela observação das pessoas e do meio. Isso é parte do material que conseguiu recolher. “Ir ao Museu de Antropologia também foi um passo muito importante, e a convivência com a Oksanna permitiu esse laço direito com a cultura. Encontrámos muitas pessoas, mas entre nós havia alguém que nos transmitia isso directamente e, por essa transmissão, amo Angola, pela força, nobreza, atenção e abertura que tivemos para saborear a cultura e jeito de ser das pessoas”, manifestou a artista multidisciplinar, clareando que, para ela, isso foi matéria de trabalho, a questão da espiritualidade, o que sai de dentro das pessoas.

Jasi revelou ainda que foi muito importante, desde o primeiro dia, dizer que queria ir ao mercado, “porque nos oferece as coisas que não estão na loja de plástico, oferece-nos matéria orgânica”. “E escolher essa fibra que sai de dentro das peças para mim é muito importante. Enquanto a Gilda viu coisas muito diferentes da sua cultura, eu vi coisas muito parecidas à minha. Estamos em continentes diferentes, mas sinto muita coisa em comum e tentei transmitir isso com as fibras de Angola e o sisal que trouxe do Brasil”, acrescentou, tendo partilhado, por fim, que vai dar continuidade aos projectos na Academia de Belas Artes, em Salvador, mas como projecto pessoal é deixar o tempo dizer, ver pouco a pouco como vai transmitir as vidas e a vivência que viveu aqui.

Uma chamada de atenção em relação aos mais necessitados

Nos seus projectos pré-residência, Oksanna Dias, que trabalha com arte há quatro anos e deu os seus primeiros passos nas ruas, com o muralismo, fez parte da residência artística ResiliArt Angola, que visa ao apoio e promoção dos trabalhos de artistas emergentes. Como grafiteira, sempre estive ligada a projectos que discorram sobre temas pontuais e actuais. Por exemplo, durante a pandemia, participou de murais que tinham como objectivo a chamada de atenção aos cuidados a ter em relação à pandemia, pinturas que reflectiam sobre a higienização das mãos e o uso da máscara. Particularmente, os seus trabalhos focam-se em temas como amor-próprio, a aceitação daquilo que somos, o empoderamento feminino, a violência infanto-juvenil, etc.

Na “Nzinga”, a artista apresentou-se com obras focadas maioritariamente no trabalho infantil, pelo que se questiona se o seu activismo artístico é resultado de experiências ou de informações que o mundo vai lhe dando. E sim, é a primeira opção. É fruto de coisas que vê, de experiências próprias, de situações que vive ou já viveu, como quando apela à exibição da “coroa” (cabelo), porque já teve vergonha de andar com o cabelo solto, por sofrer insultos por isso. “Em Angola, temos preconceito contra o nosso próprio cabelo”, lamenta.

Mas o real foco dos trabalhos mostrados não são as suas memórias, e sim histórias que colheu nas ruas, de crianças que procuram soluções para os seus problemas no lixo, saltando de um contentor para outro, em busca de artigos para construção ou reciclagem de material de engraxar calçados e garantir o sustento, sendo os homens de casa tão cedo.

“Quando estou na rua a pintar, deparo-me com diversas pessoas, sejam homens, mulheres, crianças, e durante essa residência fomos para alguns lugares, dentre eles a praça do São Paulo, que muito frequento, e é uma zona onde podemos ver muitos meninos de rua, o mesmo à volta da galeria, apesar de se encontrar num ponto turístico como é a Baía de Luanda. Quando fomos ao São Paulo, abordei dois meninos que catavam lixo, e foi curioso eles não terem sido violentos, porque é comum rapazes na sua condição terem traços de delinquência. Pude falar com eles, Mauro e Milton, e a história que contam é que procuravam no lixo madeira para produzir material de engraxar sapatos”, revelou a residente angolana.

Nesse sentido, a obra, tinta acrílica sobre tela, procura mostrar esse processo de sobrevivência, aquilo que eles não têm, mas querem como mudança. Por exemplo, o Mauro é órfão de mãe, não tem protecção do pai e gostaria de estudar. No momento em que procura madeira para ter a sua caixa de engraxar, disse que o fazia para poder comprar roupa, realça Oksanna, que referiu haver na obra o detalhe dum OVNI, uma nave espacial, que representa um mundo imaginário, um possível lugar melhor para eles, como sinal de esperança. “Depois tive a ideia de trabalhar com costura numa obra que mostra a restauração do lixo para a construção duma casa, onde as crianças sintam o calor e afecto que não têm, como o menino da obra “Sopa solitária”, que apesar de ter tido um prato de sopa, não represento a sopa por ser ofertada geralmente só numa data especial do ano, enquanto a fome é de todos os dias”, rematou.

Durante o evento, esteve patente ainda uma instalação da pintora, a “Casa de Reflexão”, obra concebida por meio de corte e costura de tecidos reciclados, onde as pessoas podiam ir, reflectir e deixar as suas ideias e/ou opiniões assinadas “nas paredes”, sobre como ajudar a melhorar a situação dos mais necessitados, sendo que a acção social muito pouco se faz sentir.

Entretanto, para o futuro, Oksanna Dias afirma já ter muitas ideias para dar continuidade do seu trabalho. “É um processo contínuo, tenho muitas ideias. Durante a residência, a Jasi foi como uma mãe para nós. Acabei ficando doente por uns dias, mas apesar disso consegui sentir que tenho força, e porque as duas foram muito boas e carinhosas. Vou sentir saudades!”, exprimiu.

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