Caneta e Papel
Crónica

Komba

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Morte, a única certeza que não nos desilude,a única verdade universal,e ainda assim o evento com o qual nunca aprendemos a lidar.Pior que perder a presença da pessoa,é perder a presença e não poder "chorar" como deve ser.

Sempre detestei óbitos e evito cemitérios."Se a pessoa já se foi, de que adianta ir para lá sofrer mais? Não vou fazer papéis para cumprir calendário social" Mas de um tempo para cá (talvez já sejam os sintomas do aumento da idade) tenho reflectido sobre a importância de "chorar bem" os nossos mortos.

A morte é difícil para quem fica, então precisamos de viver acções que ensinem o nosso corpo a desprender do corpo de quem foi.Falar só não chega.

Africanos de modo geral e angolanos em especial,estão bastante conectados ao mundo dos mortos, dos antepassados. Entendemos o conceito de que o espírito permanece depois da morte física.Fazemos cerimónias e cortejos, investimos em buffets, alugamos cadeiras, fazemos carreatas,ouvimos louvores bem alto,comemos feijão de óleo de palma, canjica e peixe.Bebemos cerveja, jogamos cartas, rimos nos intervalos dos choros e berros desconsolados. Vestimos a camisola (literalmente).Esses rituais aparentemente meros formalismos sociais, são além disso, o processo de desconexão do nosso morto, necessário para iniciar o luto. São os divisores de águas entre a vida de quem fica e a vida de quem foi. A morte é difícil para quem fica, então precisamos de viver acções que ensinem o nosso corpo a desprender do corpo de quem foi.Falar só não chega.Reflectir sobre a partida da pessoa, não chega.Precisamos chorar, ouvir o som da nossa dor, sentir o salgado do nosso coração sair pelos olhos.Precisamos sofrer em voz alta, e em comunidade. Chorar juntos é o bálsamo comum.Hoje participei de um funeral via Zoom.Ouvi a voz trémula do tio, vi os olhos chorosos dos amigos.Afinal, a máscara não esconde a dor, e pelo ecrã do meu telefone recebi o acalento para o meu sofrimento.Ligeiramente mais aliviada,chorei.Esse período de incerteza vem nos relembrar lições bonitas: Somos mais que os corpos físicos e o sentimento é transmissível até pela comunicação remota.

Foi lindo ver como superamos as barreiras para chorar os nossos mortos, para chorar juntos e celebrar a vida, comer, beber, rir, sentir.

A morte nos relembra a vida e até o luto é um processo de viver.

O luto angolano é bonito.

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Elisângela Rita

Poetisa e artista de Spoken Word

Morte, a única certeza que não nos desilude,a única verdade universal,e ainda assim o evento com o qual nunca aprendemos a lidar.Pior que perder a presença da pessoa,é perder a presença e não poder "chorar" como deve ser.

Sempre detestei óbitos e evito cemitérios."Se a pessoa já se foi, de que adianta ir para lá sofrer mais? Não vou fazer papéis para cumprir calendário social" Mas de um tempo para cá (talvez já sejam os sintomas do aumento da idade) tenho reflectido sobre a importância de "chorar bem" os nossos mortos.

A morte é difícil para quem fica, então precisamos de viver acções que ensinem o nosso corpo a desprender do corpo de quem foi.Falar só não chega.

Africanos de modo geral e angolanos em especial,estão bastante conectados ao mundo dos mortos, dos antepassados. Entendemos o conceito de que o espírito permanece depois da morte física.Fazemos cerimónias e cortejos, investimos em buffets, alugamos cadeiras, fazemos carreatas,ouvimos louvores bem alto,comemos feijão de óleo de palma, canjica e peixe.Bebemos cerveja, jogamos cartas, rimos nos intervalos dos choros e berros desconsolados. Vestimos a camisola (literalmente).Esses rituais aparentemente meros formalismos sociais, são além disso, o processo de desconexão do nosso morto, necessário para iniciar o luto. São os divisores de águas entre a vida de quem fica e a vida de quem foi. A morte é difícil para quem fica, então precisamos de viver acções que ensinem o nosso corpo a desprender do corpo de quem foi.Falar só não chega.Reflectir sobre a partida da pessoa, não chega.Precisamos chorar, ouvir o som da nossa dor, sentir o salgado do nosso coração sair pelos olhos.Precisamos sofrer em voz alta, e em comunidade. Chorar juntos é o bálsamo comum.Hoje participei de um funeral via Zoom.Ouvi a voz trémula do tio, vi os olhos chorosos dos amigos.Afinal, a máscara não esconde a dor, e pelo ecrã do meu telefone recebi o acalento para o meu sofrimento.Ligeiramente mais aliviada,chorei.Esse período de incerteza vem nos relembrar lições bonitas: Somos mais que os corpos físicos e o sentimento é transmissível até pela comunicação remota.

Foi lindo ver como superamos as barreiras para chorar os nossos mortos, para chorar juntos e celebrar a vida, comer, beber, rir, sentir.

A morte nos relembra a vida e até o luto é um processo de viver.

O luto angolano é bonito.

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