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Opinião

A santa culpa é do Kimbundu (Graças a Deus!)

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Não seria indiferente à uma rara publicação de um estudo sobre a língua nacional Kimbundu, vinda das mãos de Amélia Mingas. A interferência do Kimbundu no Português falado em Lwanda, não apetece ler de uma sentada só, simplesmente por revelar pedaços constantes de história e conhecimento linguístico impossíveis de deixar passar rapidamente. Assim, leio página a pagina a cada dia, e finjo não querer continuar a ler nesse dia para poder deliciar-me com este docinho literário mais tarde.

É uma obra interessante que além de inteligente é propícia a que pensemos um pouco mais além das letras impressas.

Por exemplo, um aspecto que tem sido comentado em sussurros sobre a nossa maneira de falar, tem a ver com os casos de algumas pessoas que ao longo do seu discurso, ora apresentam o plural, ora o ocultam. De acordo com Mingas, esse fenómeno pode ser considerado uma interferência, e passo a citar:

“É o que se pode qualificar de “desvio da norma”, o que se verifica quando um locutor de Kimbundu, com um conhecimento imperfeito da língua portuguesa, em vez de dizer “Doem-me os pés” diz “Os pé me dói”, e ao invés de dizer “Vigia as crianças” diz “Vigia as criança”. ”

Esse “desvio da norma” tem sido observado em jovens do presente século, com alguma ou nenhuma formação académica e que não são falantes normais do Kimbundu.  

Outro exemplo é um clássico que pode causar ainda alguma comichão e quiçá mal-entendidos em terras lusas quando “não existindo (...) em Kimbundu, o tratamento cerimonioso para a terceira pessoa do singular, representado em português por “Você”, o locutor luandense confunde “tu” e “você”. (...) Aí reside, em nossa opinião, a dificuldade em fazerem o acordo do pronome em função do sujeito e o predicado e o aparecimento de construções como...:

(...)

c) eu sou mulher mas você não brincas comigo

     Em vez de

    eu sou mulher mas tu não brincas comigo

(...)

e) esta maka passou no ano que você nasceste

     Em vez de

    esta maka aconteceu no ano em que tu nasceste”.

A medida que as páginas passam, mais e mais se torna evidente que o kimbundu tem uma presença no DNA do seu povo, e decerto que as outras línguas nacionais também. Gostei particularmente da forma como a autora esclarece porque é que algumas mulheres dizem “eu ainda não nasci, a minha mãe é que me nasceu”, e a sagrada culpa é somente do Kimbundu que não tem o verbo “nascer”, mas usa “dar à luz” ou “parir”, pressupondo a acção passiva do filho no processo. No exemplo de Amélia se lê:

“em português diz-se /nasci em Luanda/, mas em Kimbundu diz-se /mam´ami wangivaleka ku Lwanda/, isto é, “a minha mãe deu-me à luz (pariu-me) em Lwanda”. Deste modo, como ainda não tinha dado à luz, ela não poderia ter nascido.”

Bom, vou parar por aqui, antes de ser acusado de copy&paste de uma obra prima desta angolana, filha alheia do Sr. André e da Dona Antónia, firme no conhecimento e humilde na sabedoria, desafiando no fim a que outros acrescentem mais à “pequena contribuição ao estudo, mais geral, do problema do contacto de línguas em Angola”.

Fontes:

· Mingas, Amélia A. (2007), A interferência do Kimbundu no Português falado em Lwanda, 2ª Edição, Edições Chá de Caxinde, Luanda

· https://pt.wikipedia.org/wiki/Amélia_Mingas

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Edilson Buchartts

Cronista

Não seria indiferente à uma rara publicação de um estudo sobre a língua nacional Kimbundu, vinda das mãos de Amélia Mingas. A interferência do Kimbundu no Português falado em Lwanda, não apetece ler de uma sentada só, simplesmente por revelar pedaços constantes de história e conhecimento linguístico impossíveis de deixar passar rapidamente. Assim, leio página a pagina a cada dia, e finjo não querer continuar a ler nesse dia para poder deliciar-me com este docinho literário mais tarde.

É uma obra interessante que além de inteligente é propícia a que pensemos um pouco mais além das letras impressas.

Por exemplo, um aspecto que tem sido comentado em sussurros sobre a nossa maneira de falar, tem a ver com os casos de algumas pessoas que ao longo do seu discurso, ora apresentam o plural, ora o ocultam. De acordo com Mingas, esse fenómeno pode ser considerado uma interferência, e passo a citar:

“É o que se pode qualificar de “desvio da norma”, o que se verifica quando um locutor de Kimbundu, com um conhecimento imperfeito da língua portuguesa, em vez de dizer “Doem-me os pés” diz “Os pé me dói”, e ao invés de dizer “Vigia as crianças” diz “Vigia as criança”. ”

Esse “desvio da norma” tem sido observado em jovens do presente século, com alguma ou nenhuma formação académica e que não são falantes normais do Kimbundu.  

Outro exemplo é um clássico que pode causar ainda alguma comichão e quiçá mal-entendidos em terras lusas quando “não existindo (...) em Kimbundu, o tratamento cerimonioso para a terceira pessoa do singular, representado em português por “Você”, o locutor luandense confunde “tu” e “você”. (...) Aí reside, em nossa opinião, a dificuldade em fazerem o acordo do pronome em função do sujeito e o predicado e o aparecimento de construções como...:

(...)

c) eu sou mulher mas você não brincas comigo

     Em vez de

    eu sou mulher mas tu não brincas comigo

(...)

e) esta maka passou no ano que você nasceste

     Em vez de

    esta maka aconteceu no ano em que tu nasceste”.

A medida que as páginas passam, mais e mais se torna evidente que o kimbundu tem uma presença no DNA do seu povo, e decerto que as outras línguas nacionais também. Gostei particularmente da forma como a autora esclarece porque é que algumas mulheres dizem “eu ainda não nasci, a minha mãe é que me nasceu”, e a sagrada culpa é somente do Kimbundu que não tem o verbo “nascer”, mas usa “dar à luz” ou “parir”, pressupondo a acção passiva do filho no processo. No exemplo de Amélia se lê:

“em português diz-se /nasci em Luanda/, mas em Kimbundu diz-se /mam´ami wangivaleka ku Lwanda/, isto é, “a minha mãe deu-me à luz (pariu-me) em Lwanda”. Deste modo, como ainda não tinha dado à luz, ela não poderia ter nascido.”

Bom, vou parar por aqui, antes de ser acusado de copy&paste de uma obra prima desta angolana, filha alheia do Sr. André e da Dona Antónia, firme no conhecimento e humilde na sabedoria, desafiando no fim a que outros acrescentem mais à “pequena contribuição ao estudo, mais geral, do problema do contacto de línguas em Angola”.

Fontes:

· Mingas, Amélia A. (2007), A interferência do Kimbundu no Português falado em Lwanda, 2ª Edição, Edições Chá de Caxinde, Luanda

· https://pt.wikipedia.org/wiki/Amélia_Mingas

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