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Angola

“A construção da democracia deve fazer-se todos os dias…”(VIII)

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Devo agradecer a todos os leitores dos textos de reflexão que publico neste espaço. Agrada-me a pluralidade de comentários, o que me motiva a prosseguir, porque, afinal, a construção da democracia deve fazer-se todos os dias… E por força das opiniões e observações dos meus leitores, dou a mão a torcer em relação ao valor “residual” de vinte milhões de dólares norte-americanos que “levaram o país à crise financeira,” tendo eu citado Francisco Viana. Na verdade, houve um lapso da minha parte em ter omitido “mil”, isto é, seriam 20 mil milhões. Entretanto, ainda assim, continuam a ser valores por “baixo”, pelo facto de o Governador do BNA, José de Lima Massano, no dia 13, ter avançado cerca de 30 mil milhões de dólares norte-americanos em bancos estrangeiros, cujas explicações não vou aqui reproduzir. Além disso, as mais recentes notícias sobre eventuais transferências ilícitas na Sonangol, aconselham-me a não avançar outras cifras que podem ainda ser exíguas.

Continuando a nossa reflexão, no último texto suspendemos o desenvolvimento do tópico n.º 3: “Elevadíssimos índices de corrupção da base ao topo”. Dizíamos que nas datas comemorativas, numa política de excessiva produção de discursos platónicos, cujo conteúdo só é possível no mundo das ideias e nunca na vida social das populações que tanto o Estado diz proteger. Da mesma forma que produz legislação em série, mas sem efeito material esperado na vida dos cidadãos, famílias e comunidades, visto que as próprias autoridades políticas angolanas violavam sistematicamente os diplomas legais, visando criar riqueza privada, em detrimento das populações. É neste sentido que, em “África insubmissa”, Achille Mbembe sustenta que “O Estado africano independente transformou-se numa fábrica de decretos, portarias e regulamentos aos quais são poucas as pessoas que ainda lhes conferem importância, dado que são permanentemente contornados ou abertamente espezinhados”. Por causa da corrupção, aos poucos, o Estado Angolano foi-se transformando num Estado insensível aos problemas de natureza diversa que vivem as populações. Em face disso, o Estado Angolano pouco ou nada foi fazendo perante os altos índices de violência (salvo a repressão policial), de vulnerabilidade social, não só como consequência da guerra que terminou em 2002, mas também (sobretudo) por causa da ganância das pessoas que tinham (têm) a responsabilidade de conceber e executar políticas públicas adequadas. Antes, os governantes refugiaram-se num palavreado referente ao “resgate de valores morais, éticos, cívicos, sociais”, isto é, adoptando uma postura de “façam o que nós dizemos e não façam o que nós fazemos”, ou melhor, um grupo de moralizadores sem moral. Quer dizer, enquanto delapidavam o erário público, os governantes desviaram a atenção dos angolanos para uma discussão teórica, em vez de tomarem medidas estruturais. Em face desse comportamento dos agentes do Estado Angolano, vale a pena trazer as ideias de David Sogge, em “Angola: ‘Estado Fracassado’ bem sucedido”, segundo as quais, “Contra a violência e o caos, os cidadãos angolanos tinham poucos meios de defesa; a maior parte entrincheirou-se e adoptou estratégias de sobrevivência, sobretudo a fuga para áreas urbanas ou através das fronteiras.

... enquanto delapidavam o erário público, os governantes desviaram a atenção dos angolanos para uma discussão teórica, em vez de tomarem medidas estruturais.

As elites consideravam poucos os incentivos para porem termo à desordem; para a usar em seu favor, porém, havia muitos”. Como resultado, temos os ricos ou endinheirados angolanos, a grande maioria desempenhou ou desempenha funções executivas a todos os níveis, bastando ser “gestor” de uma Unidade Orçamental (do OGE – Orçamento Geral do Estado) e a população em geral que se entrincheirou e adoptou estratégias de sobrevivência. Essa corrupção generalizada, sentida em África, segundo Achille Mbembe, “resultou numa queda drástica da credibilidade, da autoridade moral do Estado e da sua capacidade de impor respeito e autoridade. As inúmeras leis sobre a censura apenas se traduziram por uma imprensa indigesta, pouco representativa da criatividade das sociedades africanas, mas exemplificativa da vontade dos governos de inculcar nos dominados um habitus autoritário, incorrendo no risco da ruína intelectual do continente”.

para num Estado Democrático de Direito já não basta a “mera igualdade perante a lei que assim acriticamente convocada”, segundo Fernando José Bronze. É sobre esta matéria da aplicação da lei, visando a efectivação dos direitos dos cidadãos em que se deve empenhar o Executivo Angolano, a fim de o nosso país realmente ser um bom lugar para se viver.

Relativamente ao tópico 4, “Discrepância entre a visão Formal-Constitucional e a Execução prática (material) dos comandos constitucionais”. Estamos recordados da euforia vivida após a promulgação da Constituição da República de Angola (CRA), em Fevereiro de 2010? A imprensa pública deu notoriedade às opções políticas adoptadas pela CRA e, para tal, houve manifestações a favor da nossa Magna Carta. Talvez, por ilusão, resultante da nossa alienação política, acreditávamos num futuro melhor, porque tinham sido densificados os nossos Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais. A verdade é que, na primeira tentativa do exercício do direito de manifestação (Art.º 47.º da CRA), pelo comportamento agressivo das autoridades, começamos a perceber que não era a Constituição a solução dos problemas políticos, económicos, sociais, culturais, ambientais etc. mas da necessidade de governantes (homens e mulheres) comprometidos com a causa de Angola e dos angolanos; da moralização do aparelho do Estado; da humanização dos serviços e da capacitação e qualificação do capital humano; da necessidade de partidos cuja ideologia política não busque apenas o “Controlo político e procura hegemónica” (Mbembe), estes mais preocupados com a regulação (autoridade) do que com a emancipação (razão) dos cidadãos. Porque “em todos os momentos da história, o direito é constituído por uma tensão entre regulação (autoridade) e emancipação (razão), mas com o desenrolar da experiência humana, a emancipação triunfa sobre a regulação”, no pensamento de Boaventura de Sousa Santos. Mas, infelizmente, em Angola, parece tendermos a acreditar pura e simplesmente na Constituição e na Lei, porque pouco nos empenhamos na criação de condições que tornem efectivos os direitos dos cidadãos. Mas importa lembrar, na esteira de Hart, em  “O conceito de Direito”, que “o direito é usado para controlar, orientar e planear a vida […]”, cuja aplicação concreta exige competência do funcionário público (em geral): Juiz, Governador, Administrador, Técnico, etc. para num Estado Democrático de Direito já não basta a “mera igualdade perante a lei que assim acriticamente convocada”, segundo Fernando José Bronze. É sobre esta matéria da aplicação da lei, visando a efectivação dos direitos dos cidadãos em que se deve empenhar o Executivo Angolano, a fim de o nosso país realmente ser um bom lugar para se viver. Entretanto, a competência dos funcionários públicos tem de estar fundada na qualidade de ensino, desde a educação primária à educação avançada (Licenciatura, Mestrado, Doutoramento), bem como na organização de cursos de capacitação permanente dos funcionários. Daí que, uma formação que não preveja estágios curriculares, é, à partida, pobre e inconsistente.

Retomaremos essa discussão no próximo artigo.

 

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António Eduardo

Jurista

Devo agradecer a todos os leitores dos textos de reflexão que publico neste espaço. Agrada-me a pluralidade de comentários, o que me motiva a prosseguir, porque, afinal, a construção da democracia deve fazer-se todos os dias… E por força das opiniões e observações dos meus leitores, dou a mão a torcer em relação ao valor “residual” de vinte milhões de dólares norte-americanos que “levaram o país à crise financeira,” tendo eu citado Francisco Viana. Na verdade, houve um lapso da minha parte em ter omitido “mil”, isto é, seriam 20 mil milhões. Entretanto, ainda assim, continuam a ser valores por “baixo”, pelo facto de o Governador do BNA, José de Lima Massano, no dia 13, ter avançado cerca de 30 mil milhões de dólares norte-americanos em bancos estrangeiros, cujas explicações não vou aqui reproduzir. Além disso, as mais recentes notícias sobre eventuais transferências ilícitas na Sonangol, aconselham-me a não avançar outras cifras que podem ainda ser exíguas.

Continuando a nossa reflexão, no último texto suspendemos o desenvolvimento do tópico n.º 3: “Elevadíssimos índices de corrupção da base ao topo”. Dizíamos que nas datas comemorativas, numa política de excessiva produção de discursos platónicos, cujo conteúdo só é possível no mundo das ideias e nunca na vida social das populações que tanto o Estado diz proteger. Da mesma forma que produz legislação em série, mas sem efeito material esperado na vida dos cidadãos, famílias e comunidades, visto que as próprias autoridades políticas angolanas violavam sistematicamente os diplomas legais, visando criar riqueza privada, em detrimento das populações. É neste sentido que, em “África insubmissa”, Achille Mbembe sustenta que “O Estado africano independente transformou-se numa fábrica de decretos, portarias e regulamentos aos quais são poucas as pessoas que ainda lhes conferem importância, dado que são permanentemente contornados ou abertamente espezinhados”. Por causa da corrupção, aos poucos, o Estado Angolano foi-se transformando num Estado insensível aos problemas de natureza diversa que vivem as populações. Em face disso, o Estado Angolano pouco ou nada foi fazendo perante os altos índices de violência (salvo a repressão policial), de vulnerabilidade social, não só como consequência da guerra que terminou em 2002, mas também (sobretudo) por causa da ganância das pessoas que tinham (têm) a responsabilidade de conceber e executar políticas públicas adequadas. Antes, os governantes refugiaram-se num palavreado referente ao “resgate de valores morais, éticos, cívicos, sociais”, isto é, adoptando uma postura de “façam o que nós dizemos e não façam o que nós fazemos”, ou melhor, um grupo de moralizadores sem moral. Quer dizer, enquanto delapidavam o erário público, os governantes desviaram a atenção dos angolanos para uma discussão teórica, em vez de tomarem medidas estruturais. Em face desse comportamento dos agentes do Estado Angolano, vale a pena trazer as ideias de David Sogge, em “Angola: ‘Estado Fracassado’ bem sucedido”, segundo as quais, “Contra a violência e o caos, os cidadãos angolanos tinham poucos meios de defesa; a maior parte entrincheirou-se e adoptou estratégias de sobrevivência, sobretudo a fuga para áreas urbanas ou através das fronteiras.

... enquanto delapidavam o erário público, os governantes desviaram a atenção dos angolanos para uma discussão teórica, em vez de tomarem medidas estruturais.

As elites consideravam poucos os incentivos para porem termo à desordem; para a usar em seu favor, porém, havia muitos”. Como resultado, temos os ricos ou endinheirados angolanos, a grande maioria desempenhou ou desempenha funções executivas a todos os níveis, bastando ser “gestor” de uma Unidade Orçamental (do OGE – Orçamento Geral do Estado) e a população em geral que se entrincheirou e adoptou estratégias de sobrevivência. Essa corrupção generalizada, sentida em África, segundo Achille Mbembe, “resultou numa queda drástica da credibilidade, da autoridade moral do Estado e da sua capacidade de impor respeito e autoridade. As inúmeras leis sobre a censura apenas se traduziram por uma imprensa indigesta, pouco representativa da criatividade das sociedades africanas, mas exemplificativa da vontade dos governos de inculcar nos dominados um habitus autoritário, incorrendo no risco da ruína intelectual do continente”.

para num Estado Democrático de Direito já não basta a “mera igualdade perante a lei que assim acriticamente convocada”, segundo Fernando José Bronze. É sobre esta matéria da aplicação da lei, visando a efectivação dos direitos dos cidadãos em que se deve empenhar o Executivo Angolano, a fim de o nosso país realmente ser um bom lugar para se viver.

Relativamente ao tópico 4, “Discrepância entre a visão Formal-Constitucional e a Execução prática (material) dos comandos constitucionais”. Estamos recordados da euforia vivida após a promulgação da Constituição da República de Angola (CRA), em Fevereiro de 2010? A imprensa pública deu notoriedade às opções políticas adoptadas pela CRA e, para tal, houve manifestações a favor da nossa Magna Carta. Talvez, por ilusão, resultante da nossa alienação política, acreditávamos num futuro melhor, porque tinham sido densificados os nossos Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais. A verdade é que, na primeira tentativa do exercício do direito de manifestação (Art.º 47.º da CRA), pelo comportamento agressivo das autoridades, começamos a perceber que não era a Constituição a solução dos problemas políticos, económicos, sociais, culturais, ambientais etc. mas da necessidade de governantes (homens e mulheres) comprometidos com a causa de Angola e dos angolanos; da moralização do aparelho do Estado; da humanização dos serviços e da capacitação e qualificação do capital humano; da necessidade de partidos cuja ideologia política não busque apenas o “Controlo político e procura hegemónica” (Mbembe), estes mais preocupados com a regulação (autoridade) do que com a emancipação (razão) dos cidadãos. Porque “em todos os momentos da história, o direito é constituído por uma tensão entre regulação (autoridade) e emancipação (razão), mas com o desenrolar da experiência humana, a emancipação triunfa sobre a regulação”, no pensamento de Boaventura de Sousa Santos. Mas, infelizmente, em Angola, parece tendermos a acreditar pura e simplesmente na Constituição e na Lei, porque pouco nos empenhamos na criação de condições que tornem efectivos os direitos dos cidadãos. Mas importa lembrar, na esteira de Hart, em  “O conceito de Direito”, que “o direito é usado para controlar, orientar e planear a vida […]”, cuja aplicação concreta exige competência do funcionário público (em geral): Juiz, Governador, Administrador, Técnico, etc. para num Estado Democrático de Direito já não basta a “mera igualdade perante a lei que assim acriticamente convocada”, segundo Fernando José Bronze. É sobre esta matéria da aplicação da lei, visando a efectivação dos direitos dos cidadãos em que se deve empenhar o Executivo Angolano, a fim de o nosso país realmente ser um bom lugar para se viver. Entretanto, a competência dos funcionários públicos tem de estar fundada na qualidade de ensino, desde a educação primária à educação avançada (Licenciatura, Mestrado, Doutoramento), bem como na organização de cursos de capacitação permanente dos funcionários. Daí que, uma formação que não preveja estágios curriculares, é, à partida, pobre e inconsistente.

Retomaremos essa discussão no próximo artigo.

 

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