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Política

“A construção da democracia deve fazer-se todos os dias…”(VI)

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Os angolanos e sul-africanos, desde o dia 1 de Dezembro, podem entrar e permanecer na África do Sul, para os angolanos, e em Angola, para os sul-africanos, até 30 dias, por viagem, e até 90 dias ao ano, sem precisarem de vistos, ou seja, passam os cidadãos, de ambos os Estados, a beneficiar do acordo de supressão de vistos assinado pelas autoridades Angolanas e Sul-Africanas. Entretanto, para quem pretenda permanecer em cada um dos países por um período superior àqueles limites fixados no aludido acordo deverá tratar o visto corresponde ao objectivo dessa pretensão ou necessidade.

Assim, sem querermos esmiuçar os benefícios desse acordo, que é, desde já, um passo importante na cooperação entre Estados da mesma sub-região de África, a África Austral, dito de outro modo, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), não podemos menosprezar os interesses turísticos, económicos e político-históricos dos cidadãos sul-africanos em Angola, mas julgo que os angolanos saíram em grande medida a ganhar com este acordo, sendo que milhares de concidadãos nossos se descolam à África do Sul em busca de melhores serviços: estudos, tratamento médico, principalmente; e os negócios não ficam fora desse leque de interesses dos angolanos.

A África do Sul tem várias experiências a transferir para Angola, desde o saneamento básico à gestão urbana mais complexa. Precisamos de compreender que nenhum sul-africano, desde o mais pobre ao mais rico, tomaria a iniciativa, nas condições actuais de Angola, de vir procurar os serviços de ensino e muito menos hospitalares ao nosso país. As nossas Universidades, públicas ou privadas, estão longe de competirem com as sul-africanas. O inverso é o que todos nós dominamos. Quer dizer, muitos jovens angolanos formaram-se e continuam a formar-se na África do Sul, outros concidadãos nossos vão periodicamente tratar-se à África do Sul; além dos que já lá vivem, outros ainda lá pretendem instalar-se, em busca de melhores condições de vida que Angola não oferece ainda.

O Executivo angolano, de 2002 a 2012, apostou na reabilitação física do país e deixou em segundo plano a “reabilitação” do tecido social. Por outras palavras, o Estado fez menos do que devia ter feito, ou seja, andou em sentido quase que contrário à obrigação de “efectuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes no capital humano.

Angola, neste momento, só pode equilibrar com a África do Sul em iniciativas políticas quer na SADC, na União Africana, quer na tomada de posições sobre várias matérias na arena internacional.

Mas, as populações angolanas têm o direito humano de viver num país em que a dignidade da pessoa humana seja efectivamente protegida, não apenas no plano dos discursos políticos, mas também no plano material e fáctico, isto é, da execução concreta das tarefas fundamentais do Estado, consagradas no art.º 21.º da Constituição da República.

O Executivo angolano, de 2002 a 2012, apostou na reabilitação física do país e deixou em segundo plano a “reabilitação” do tecido social. Por outras palavras, o Estado fez menos do que devia ter feito, ou seja, andou em sentido quase que contrário à obrigação de “efectuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes no capital humano, com destaque para o desenvolvimento integral das crianças e dos jovens, bem como na educação, na saúde, na economia primária e secundária e noutros sectores estruturantes para o desenvolvimento auto-sustentável (Art.º 21.º, i)).

Hoje, as consequências desse desvio programático do Estado angolano, que se reflectiu no “desinvestimento no capital humano”, são reais e sentidas pelas populações. Já é público que o sector da educação precisa de mais de 20 mil professores; os hospitais estão no “fundo do poço”, pois não conseguem responder à demanda (escassez gritante de medicamentos e dos meios de trabalho básicos – elevando os índices de mortalidade e morbilidade); o aumento galopante da criminalidade infanto-juvenil e dos crimes hediondos reflecte a crise social de Angola. Há, em poucas palavras, uma degradação geral do sistema social.

Deste modo, os sul-africanos compreenderão que temos uma Angola mediática, e outra real. A Angola real não dispõe de serviços de transportes públicos (temos os nossos azuis-e-brancos, ou simplesmente candongueiros); ficarão assustados se adoecerem por aqui; os bolsos ficarão rotos se apostarem em tomar as refeições em hotéis e restaurantes; as chuvas reforçarão a imagem desoladora de Luanda, uma cidade que não encontrou ainda um modelo fiável de gestão de resíduos sólidos e, em contrapartida, terão o prazer de visitar as paisagens riquíssimas em beleza natural, por Angola adentro.

... devemos lutar em primeiro lugar pelo pleno exercício dos direitos de liberdade e dos direitos sociais, porquanto “os direitos de liberdade são direitos de agir e os direitos sociais de exigir”.

Não podemos tapar o sol com a peneira: a situação social de Angola é, deveras, deplorável. É essa degradação social generalizada do País que deve levar os cidadãos angolanos a assumirem uma atitude de participação activa nos diferentes níveis da vida comunitária, e jamais aceitarem uma dependência total dos titulares de cargos políticos, sendo que “O titular de um cargo político é um cidadão, que durante algum tempo, por dever cívico, exerce uma determinada função, mas depois volta a ser cidadão”, segundo os ensinamentos de Jorge Miranda. Ainda ao pé do pensamento desse constitucionalista português, devemos lutar em primeiro lugar pelo pleno exercício dos direitos de liberdade e dos direitos sociais, porquanto “os direitos de liberdade são direitos de agir e os direitos sociais de exigir. Mais precisamente: as liberdades têm como contrapartida uma atitude de respeito e de não interferência por parte de outrem e os direitos sociais traduzem-se, no seu cerne, na pretensão de prestações normativas e materiais ou fáticas”.

Ora, é habitual em Angola as pretensões serem predominante e abundantemente normativas, e escassamente materiais e fácticas. Durante muitos anos, o Executivo ficou preso à exaltação das estradas que havia construído durante a famosa década de 2002 a 2012, mas que nos dias que correm, por ausência de manutenção, estão altamente degradadas. É só viajarmos de Luanda a Benguela e vice-versa, por terra, e constataremos a desolação.

O Estado angolano tem, efectivamente, de promover o bem-estar, a solidariedade social e a elevação da qualidade de vida do povo angolano, designadamente dos grupos populacionais mais desfavorecidas, como expressamente o estabelece a Constituição da República. Em face disso, onde estão as nossas debilidades? Será a matéria de reflexão na próxima semana.

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António Eduardo

Jurista

Os angolanos e sul-africanos, desde o dia 1 de Dezembro, podem entrar e permanecer na África do Sul, para os angolanos, e em Angola, para os sul-africanos, até 30 dias, por viagem, e até 90 dias ao ano, sem precisarem de vistos, ou seja, passam os cidadãos, de ambos os Estados, a beneficiar do acordo de supressão de vistos assinado pelas autoridades Angolanas e Sul-Africanas. Entretanto, para quem pretenda permanecer em cada um dos países por um período superior àqueles limites fixados no aludido acordo deverá tratar o visto corresponde ao objectivo dessa pretensão ou necessidade.

Assim, sem querermos esmiuçar os benefícios desse acordo, que é, desde já, um passo importante na cooperação entre Estados da mesma sub-região de África, a África Austral, dito de outro modo, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), não podemos menosprezar os interesses turísticos, económicos e político-históricos dos cidadãos sul-africanos em Angola, mas julgo que os angolanos saíram em grande medida a ganhar com este acordo, sendo que milhares de concidadãos nossos se descolam à África do Sul em busca de melhores serviços: estudos, tratamento médico, principalmente; e os negócios não ficam fora desse leque de interesses dos angolanos.

A África do Sul tem várias experiências a transferir para Angola, desde o saneamento básico à gestão urbana mais complexa. Precisamos de compreender que nenhum sul-africano, desde o mais pobre ao mais rico, tomaria a iniciativa, nas condições actuais de Angola, de vir procurar os serviços de ensino e muito menos hospitalares ao nosso país. As nossas Universidades, públicas ou privadas, estão longe de competirem com as sul-africanas. O inverso é o que todos nós dominamos. Quer dizer, muitos jovens angolanos formaram-se e continuam a formar-se na África do Sul, outros concidadãos nossos vão periodicamente tratar-se à África do Sul; além dos que já lá vivem, outros ainda lá pretendem instalar-se, em busca de melhores condições de vida que Angola não oferece ainda.

O Executivo angolano, de 2002 a 2012, apostou na reabilitação física do país e deixou em segundo plano a “reabilitação” do tecido social. Por outras palavras, o Estado fez menos do que devia ter feito, ou seja, andou em sentido quase que contrário à obrigação de “efectuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes no capital humano.

Angola, neste momento, só pode equilibrar com a África do Sul em iniciativas políticas quer na SADC, na União Africana, quer na tomada de posições sobre várias matérias na arena internacional.

Mas, as populações angolanas têm o direito humano de viver num país em que a dignidade da pessoa humana seja efectivamente protegida, não apenas no plano dos discursos políticos, mas também no plano material e fáctico, isto é, da execução concreta das tarefas fundamentais do Estado, consagradas no art.º 21.º da Constituição da República.

O Executivo angolano, de 2002 a 2012, apostou na reabilitação física do país e deixou em segundo plano a “reabilitação” do tecido social. Por outras palavras, o Estado fez menos do que devia ter feito, ou seja, andou em sentido quase que contrário à obrigação de “efectuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes no capital humano, com destaque para o desenvolvimento integral das crianças e dos jovens, bem como na educação, na saúde, na economia primária e secundária e noutros sectores estruturantes para o desenvolvimento auto-sustentável (Art.º 21.º, i)).

Hoje, as consequências desse desvio programático do Estado angolano, que se reflectiu no “desinvestimento no capital humano”, são reais e sentidas pelas populações. Já é público que o sector da educação precisa de mais de 20 mil professores; os hospitais estão no “fundo do poço”, pois não conseguem responder à demanda (escassez gritante de medicamentos e dos meios de trabalho básicos – elevando os índices de mortalidade e morbilidade); o aumento galopante da criminalidade infanto-juvenil e dos crimes hediondos reflecte a crise social de Angola. Há, em poucas palavras, uma degradação geral do sistema social.

Deste modo, os sul-africanos compreenderão que temos uma Angola mediática, e outra real. A Angola real não dispõe de serviços de transportes públicos (temos os nossos azuis-e-brancos, ou simplesmente candongueiros); ficarão assustados se adoecerem por aqui; os bolsos ficarão rotos se apostarem em tomar as refeições em hotéis e restaurantes; as chuvas reforçarão a imagem desoladora de Luanda, uma cidade que não encontrou ainda um modelo fiável de gestão de resíduos sólidos e, em contrapartida, terão o prazer de visitar as paisagens riquíssimas em beleza natural, por Angola adentro.

... devemos lutar em primeiro lugar pelo pleno exercício dos direitos de liberdade e dos direitos sociais, porquanto “os direitos de liberdade são direitos de agir e os direitos sociais de exigir”.

Não podemos tapar o sol com a peneira: a situação social de Angola é, deveras, deplorável. É essa degradação social generalizada do País que deve levar os cidadãos angolanos a assumirem uma atitude de participação activa nos diferentes níveis da vida comunitária, e jamais aceitarem uma dependência total dos titulares de cargos políticos, sendo que “O titular de um cargo político é um cidadão, que durante algum tempo, por dever cívico, exerce uma determinada função, mas depois volta a ser cidadão”, segundo os ensinamentos de Jorge Miranda. Ainda ao pé do pensamento desse constitucionalista português, devemos lutar em primeiro lugar pelo pleno exercício dos direitos de liberdade e dos direitos sociais, porquanto “os direitos de liberdade são direitos de agir e os direitos sociais de exigir. Mais precisamente: as liberdades têm como contrapartida uma atitude de respeito e de não interferência por parte de outrem e os direitos sociais traduzem-se, no seu cerne, na pretensão de prestações normativas e materiais ou fáticas”.

Ora, é habitual em Angola as pretensões serem predominante e abundantemente normativas, e escassamente materiais e fácticas. Durante muitos anos, o Executivo ficou preso à exaltação das estradas que havia construído durante a famosa década de 2002 a 2012, mas que nos dias que correm, por ausência de manutenção, estão altamente degradadas. É só viajarmos de Luanda a Benguela e vice-versa, por terra, e constataremos a desolação.

O Estado angolano tem, efectivamente, de promover o bem-estar, a solidariedade social e a elevação da qualidade de vida do povo angolano, designadamente dos grupos populacionais mais desfavorecidas, como expressamente o estabelece a Constituição da República. Em face disso, onde estão as nossas debilidades? Será a matéria de reflexão na próxima semana.

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